As GAMBAS
(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 01/04/2017)
Em
Portugal quem não se mete num partido está tramado, é só pagar as
contas dos outros e as vidas dos parasitas que andam a coçar o rabo por
São Bento e ainda lhe aparecem à noite na televisão.
Estava
zangado. Danado mesmo. Porra de vida. Esqueceu-se do telemóvel em casa.
No carro? Agora não pode procurar. Também para quê? Notícias? Quem quer
saber dos políticos? A Síria e o Trump e não sei quê, o que é que isso
interessa? O que o faz zangar é o vizinho do lado, o carro de trás, o
semáforo da frente, a fila do supermercado, as notas da escola, os dias
de chuva, os postais dos impostos, os anos da sogra, as promoções dos
colegas, as multas de estacionamento, os crimes do telejornal, as
bicadas nas redes, as mortes dos amigos, os sucessos alheios, os
fracassos próprios. Onde é Mossul? O Guterres e os jornalistas que
tratem disso porque o tacho é deles. Como se já não tivesse problemas
que cheguem. A prestação do carro novo. Devia ou não ter comprado a
máquina? Sim, porque são horas no trânsito para sair de casa e chegar a
casa. Não, porque o emprego anda tremido com os novos patrões e a merda
dos computadores para tudo, qualquer dia o computador passa a dormir com
a mulher em vez dele. O ordenado nem é dos piores mas o Estado come
tudo com os impostos e a casa está por pagar e enquanto se mantiver
assim com os juros em baixo a coisa aguenta mas se a Le Pen ganhar e a
Europa estoirar não é bom dever aos bancos. Mas se a Le Pen ganhar e a
Europa estoirar lá se vai por água abaixo um carro novo e a escudos não
vamos lá, são parvoíces daquela do Bloco e dos comunas. Ainda acabam a
despedir os funcionários públicos e a mulher é um deles e se a coisa
ficar preta é uma garantia de que não deixam de comer. Ao menos o puto
come mas a comida não lhe abre a cabeça para a escola e as notas são uma
miséria embora a culpa seja dos professores que não ligam nenhuma e
querem é folgas e feriados. Os países não vão à falência. Ou vão? Ele
não tem emprego no Estado, se isto correr mal vai borda fora,
reformam-no. Ainda por cima o chefe não o grama, um palerma que passa o
dia no Facebook a fingir que trabalha. O Lopes é que foi esperto pôs-se a
andar para Angola e fez uma massas e agora tem a conta recheada. O
estúpido do Lopes, conhece-o desde miúdo, nunca teve talento para nada
exceto para lamber botas mas arranjou padrinhos e tem as costas quentes.
É militante. Em Portugal quem não se mete num partido está tramado, é
só pagar as contas dos outros e as vidas dos parasitas que andam a coçar
o rabo por São Bento e ainda lhe aparecem à noite na televisão. E as
contas dos bancos, essa gatunagem. Agora é o Montepio amanhã é a Santa
Casa ou a Casa Pia ou um desses lugares santos. Ainda acabamos a
resgatar o Benfica e já agora se o Benfica ganhar temos patuscada, umas
cervejas, uma mariscada, sem mulheres porque as mulheres falam de mais.
Desde que a sogra enviuvou que a vida lá em casa é uma chatice. O filho
fica calado num canto com os auscultadores nos ouvidos, Rodriguinho não
comes?, é bife, tu gostas de bife filho, enquanto a mulher e a sogra
veem a telenovela. Aquele filho madraço quer ter uma banda e abana muito
as ancas. Ainda me dá em maricas, o puto, agora é moda. Até as mulheres
são. E fuma às escondidas. Bom… ele faz o mesmo. A mulher não deixa. Se
apanha o puto com droga dá-lhe um estalo palavra de honra. O rapaz anda
nos festivais e quem paga é a mãe que lhe passa a maquia para o bolso. A
mulher e a sogra não podiam ver o menino sofrer por não ir ao Rock in
Rio. O nome diz tudo. Tudo que mete Brasil sabe-se no que dá. País de
caloteiros. A filha casou-se e abalou para o estrangeiro com o marido,
isto aqui não tem futuro, é um país sem futuro, é um atraso de vida,
vamos para a Alemanha. E nunca punha os pés em Portugal. Cá era
explorada na caixa de um hipermercado. E isto com um curso superior de
comunicação e marketing que lhe tinha saído do bolso e que ela dizia que
havia de render. Sim, sim. Raio de país, mesmo um atraso de vida. O
Costa e o Passos a brincar às escondidas a ver quem saca mais. Com uma
mão à frente e outra atrás. Ele não ia votar, estava farto de votos,
mais que fazer. Tudo uma cambada de corruptos como o outro que foi para
Paris e que puseram à sombra como se fosse o único. O Lopes de vez em
quando descaía-se e contava umas coisas de arrepiar, aquilo em Luanda
era uma festa, era tudo a meter a mão na massa. E ele especado num
emprego sem saída e a aturar o patrão que era vinte anos mais novo que
ele e andava sempre agarrado ao telemóvel. Bom, Portugal tinha uma
vantagem. Não tinha terroristas. Nem árabes. E tinha o sol, mas o sol
quando nasce não é para todos. Ele nunca o via. Nem no escritório. Nem
na casa suburbana voltada para a sombra do prédio em frente. No inverno
saía de noite e entrava de noite. O sol entrava-lhe pela janela do carro
numa curva súbita da autoestrada. Sabia-lhe bem. Lembrava-lhe os tempos
em que era novo e andava a acampar com os amigos nas praias. O mar era
limpo. O planeta não estava todo lixado. O carro era a casa dele. Fizera
bem em trocar de máquina. Antes que a merda do país estoire de vez. A
ver se não se esquece de mandar a mulher encomendar as gambas e
cozê-las.
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