SOCIEDADE PODRE
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1 O
grupo parlamentar do PCP estava reunido em Portalegre e sentiu-se na
obrigação de ir visitar o Tejo, ali ao pé. Alguns deputados embarcaram
num barco de um pescador de rio e ouviram o óbvio: que o Tejo está
morto, morto pelas três fábricas de celuloses ali instaladas. Nem um
peixe, uma lampreia, um lagostim, nada. Cabisbaixo, o deputado João
Oliveira balbuciou qualquer coisa como tentar conciliar os interesses de
uns com os de outros — como se, depois de ver as imagens escandalosas
que todos vimos sobre o nosso maior rio transformado num esgoto de
espuma verde à superfície e toneladas de sedimentos venenosos
depositados no fundo, tal fosse possível. Na Assembleia da República,
aliás, todos os partidos, saudaram, aliviados, a decisão do nosso meio
ministro do Ambiente de prorrogar por mais 30 dias a emissão de metade
dos esgotos da Celtejo para o rio (eu chamo-lhe meio ministro do
Ambiente, em vez ministro do Meio Ambiente, porque ele resolve todos os
problemas pela metade: resolve metade do conflito entre os taxistas e as
plataformas móveis de transporte, manda derrubar só metade dos
clandestinos da Ria Formosa, manda suspender metade da morte que a
Celtejo envia para o Tejo, apesar do caudal deste estar a um terço do
habitual).
Por
uma vez, vou até elogiar o deputado do PAN, André Silva: ele foi o
único, na AR, que se atreveu a dizer o que ninguém mais tem coragem de
dizer: que aquelas três empresas, que só sobrevivem matando um rio,
poluindo a atmosfera todos os dias e destruindo a beleza natural de uma
paisagem lindíssima, deveriam ser encerradas e os seus administradores,
culpados de um verdadeiro crime ambiental e que revelaram um absoluto
desprezo pelo interesse público e pela saúde alheia, deveriam ser
metidos na prisão. Como se estivesse perante uma piada e não perante uma
verdade inconveniente, António Costa respondeu-lhe com uma sobranceria
equivalente ao desprezo com que os socialistas sempre olharam para as
questões do Ambiente, chamando Projectos PIN a urbanizações em terrenos
da Reserva Agrícola e “espaços verdes” a campos de golfe em zonas da
Reserva Ecológica Nacional. Para eles, o que distingue a sua política do
Ambiente da do PSD e do CDS, é criarem um Ministério e não apenas uma
Secretaria de Estado — mesmo que lá enfiem apenas meio ministro. Já para
a direita, basta soltar 57 supostos linces da Malcata na Serra de
Mértola (cada um dos quais custará ao Estado muito mais do que eu
custarei ao longo de toda a minha vida, como já aqui expliquei), e
pronto, pode compensar-se com mais uns milhares de metros quadrados de
construção autorizados para as arribas do Algarve.
É
na extrema-esquerda que os dilemas são mais embaraçosos. Deixemos de
lado Os Verdes, que são uma continuada ficção política e verdejante.
Para o PCP e o BE o drama é simples: como defender o indefensável para
não ter de pagar o preço de mandar para o desemprego umas centenas, ou
mesmo milhares de trabalhadores, ao serviço das fábricas de papel? Eles,
que por definição e por sobrevivência eleitoral, são os defensores
naturais dos trabalhadores? A resposta requer uma coragem — deles e de
todos os outros — que eu não vejo ninguém ser capaz de ter daqui até às
próximas legislativas. Coragem, frieza de raciocínio, sentido de futuro e
uma ideia para o país. Ser capaz de contrariar uma fatalidade
estabelecida. Mudar de paradigma. Uma verdadeira reforma estrutural, de
que todos falam, mas ninguém exemplifica. Tudo aquilo a que não estamos
habituados. Vejamos os dados do problema.
De
um lado, temos a poderosíssima indústria do papel e das celuloses —
que, por mérito próprio, mas também porque actua num quadro permissivo
de terceiro mundo, é hoje uma referência mundial de excelência. Parabéns
à Navigator, ao papel de carta, ao papel higiénico de várias cores
(cujas tintas, porém, suponho que o Tejo ou outro tenha de absorver).
Representam, dizem-nos, 1300 milhões de exportações na balança comercial
— parabéns, outra vez. Criam não sei quantos postos de trabalho,
centenas ou milhares, nas fábricas de transformação, onde os eucaliptos
passam a pasta de papel. E nas suas plantações, dizem-nos também,
praticamente não há incêndios. Parabéns, parabéns, parabéns.
Agora,
o reverso da medalha. Não, eles não têm incêndios: têm dinheiro e
dimensão suficiente para os evitar: para terem guardas, para roçarem os
matos, para fazerem corta-fogos, para terem depósitos de água e um
serviço próprio de actuação rápida. O problema são os pequenos
proprietários, sem dimensão nem dinheiro, a quem eles convencem a
plantar eucaliptos (em Pedrógão, já estão a fazê-lo outra vez a grande
velocidade), e onde o negócio é simples: se houver incêndio, o prejuízo é
todo dos pequenos proprietários e dos contribuintes; se não houver, é
dos três grandes grupos de celuloses e dos pequenos proprietários.
A
segunda questão é que o eucalipto, uma árvore endógena, como diz a
sabedoria popular, “seca tudo à roda”. E seca: agricultura,
silvicultura, pastorícia, caça, água, empregos no terreno, qualquer
actividade humana. Vão à Serra da Ossa, à Serra de Monchique, à Serra do
Cercal, que outrora deu o nome a Vila Nova de Milfontes, e contem
quantas fontes, quantos animais selvagens, quantos pássaros, quantas
pessoas lá encontram: zero.
O eucalipto é, por si só, o maior factor de desertificação do país, e a desertificação do país é o nosso problema número um. Não vale a pena falarem em descentralização, nem em ocupação do interior nem em valorização do mundo rural, enquanto estivermos submetidos à ditadura do eucalipto. Juntem a isso o conhecimento, hoje absolutamente indisfarçável, de que o eucalipto é, de longe, o maior factor de deflagração de incêndios: o eucalipto mata. Mata a floresta, mata casas, povoações, pessoas. E, como vimos agora, mata rios.
Mata
a pesca, a agricultura, a paisagem, o turismo do interior. Com a
limpeza dos rios, com as indemnizações às vítimas dos fogos, com os
negócios e negociatas à volta do combate aos incêndios, só de custos
directos a indústria de celuloses custa uma fortuna aos contribuintes.
Mas quem se quiser deitar a pensar quanto mais custa ao país e aos
contribuintes o abandono dos campos e a desertificação de todo o
interior, rapidamente chegará à conclusão que 1300 milhões não são nada
comparados com isso.
Restam
os postos de trabalho que se perderiam. Mas chamo a atenção para os
estudos recentes que têm vindo a público e que nos dizem que, com a
quebra da natalidade e o envelhecimento demográfico galopante que temos,
o nosso principal problema em breve vai ser a escassez de dezenas, e
logo centenas, de milhares de postos de trabalho na indústria, se
quisermos continuar a crescer. Só é preciso ter a coragem de mudar de
paradigma. Sairmos de um pensamento de país terceiro-mundista.
MIGUEL SOUSA TAVARES
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