LOBOS

Sou, na verdade, o Lobo da Estepe, como me digo tantas vezes – aquele animal extraviado que não encontra abrigo nem na alegria nem alimento num mundo que lhe é estranho e incompreensível

Herman Hesse

sábado, 10 de fevereiro de 2018

ZERO + ZERO= ZERO



SOCIEDADE PODRE




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1 O grupo parlamentar do PCP estava reunido em Portalegre e sentiu-se na obrigação de ir visitar o Tejo, ali ao pé. Alguns deputados embarcaram num barco de um pescador de rio e ouviram o óbvio: que o Tejo está morto, morto pelas três fábricas de celuloses ali instaladas. Nem um peixe, uma lampreia, um lagostim, nada. Cabisbaixo, o deputado João Oliveira balbuciou qualquer coisa como tentar conciliar os interesses de uns com os de outros — como se, depois de ver as imagens escandalosas que todos vimos sobre o nosso maior rio transformado num esgoto de espuma verde à superfície e toneladas de sedimentos venenosos depositados no fundo, tal fosse possível. Na Assembleia da República, aliás, todos os partidos, saudaram, aliviados, a decisão do nosso meio ministro do Ambiente de prorrogar por mais 30 dias a emissão de metade dos esgotos da Celtejo para o rio (eu chamo-lhe meio ministro do Ambiente, em vez ministro do Meio Ambiente, porque ele resolve todos os problemas pela metade: resolve metade do conflito entre os taxistas e as plataformas móveis de transporte, manda derrubar só metade dos clandestinos da Ria Formosa, manda suspender metade da morte que a Celtejo envia para o Tejo, apesar do caudal deste estar a um terço do habitual).
Por uma vez, vou até elogiar o deputado do PAN, André Silva: ele foi o único, na AR, que se atreveu a dizer o que ninguém mais tem coragem de dizer: que aquelas três empresas, que só sobrevivem matando um rio, poluindo a atmosfera todos os dias e destruindo a beleza natural de uma paisagem lindíssima, deveriam ser encerradas e os seus administradores, culpados de um verdadeiro crime ambiental e que revelaram um absoluto desprezo pelo interesse público e pela saúde alheia, deveriam ser metidos na prisão. Como se estivesse perante uma piada e não perante uma verdade inconveniente, António Costa respondeu-lhe com uma sobranceria equivalente ao desprezo com que os socialistas sempre olharam para as questões do Ambiente, chamando Projectos PIN a urbanizações em terrenos da Reserva Agrícola e “espaços verdes” a campos de golfe em zonas da Reserva Ecológica Nacional. Para eles, o que distingue a sua política do Ambiente da do PSD e do CDS, é criarem um Ministério e não apenas uma Secretaria de Estado — mesmo que lá enfiem apenas meio ministro. Já para a direita, basta soltar 57 supostos linces da Malcata na Serra de Mértola (cada um dos quais custará ao Estado muito mais do que eu custarei ao longo de toda a minha vida, como já aqui expliquei), e pronto, pode compensar-se com mais uns milhares de metros quadrados de construção autorizados para as arribas do Algarve.
É na extrema-esquerda que os dilemas são mais embaraçosos. Deixemos de lado Os Verdes, que são uma continuada ficção política e verdejante. Para o PCP e o BE o drama é simples: como defender o indefensável para não ter de pagar o preço de mandar para o desemprego umas centenas, ou mesmo milhares de trabalhadores, ao serviço das fábricas de papel? Eles, que por definição e por sobrevivência eleitoral, são os defensores naturais dos trabalhadores? A resposta requer uma coragem — deles e de todos os outros — que eu não vejo ninguém ser capaz de ter daqui até às próximas legislativas. Coragem, frieza de raciocínio, sentido de futuro e uma ideia para o país. Ser capaz de contrariar uma fatalidade estabelecida. Mudar de paradigma. Uma verdadeira reforma estrutural, de que todos falam, mas ninguém exemplifica. Tudo aquilo a que não estamos habituados. Vejamos os dados do problema.
De um lado, temos a poderosíssima indústria do papel e das celuloses — que, por mérito próprio, mas também porque actua num quadro permissivo de terceiro mundo, é hoje uma referência mundial de excelência. Parabéns à Navigator, ao papel de carta, ao papel higiénico de várias cores (cujas tintas, porém, suponho que o Tejo ou outro tenha de absorver). Representam, dizem-nos, 1300 milhões de exportações na balança comercial — parabéns, outra vez. Criam não sei quantos postos de trabalho, centenas ou milhares, nas fábricas de transformação, onde os eucaliptos passam a pasta de papel. E nas suas plantações, dizem-nos também, praticamente não há incêndios. Parabéns, parabéns, parabéns.
Agora, o reverso da medalha. Não, eles não têm incêndios: têm dinheiro e dimensão suficiente para os evitar: para terem guardas, para roçarem os matos, para fazerem corta-fogos, para terem depósitos de água e um serviço próprio de actuação rápida. O problema são os pequenos proprietários, sem dimensão nem dinheiro, a quem eles convencem a plantar eucaliptos (em Pedrógão, já estão a fazê-lo outra vez a grande velocidade), e onde o negócio é simples: se houver incêndio, o prejuízo é todo dos pequenos proprietários e dos contribuintes; se não houver, é dos três grandes grupos de celuloses e dos pequenos proprietários.
A segunda questão é que o eucalipto, uma árvore endógena, como diz a sabedoria popular, “seca tudo à roda”. E seca: agricultura, silvicultura, pastorícia, caça, água, empregos no terreno, qualquer actividade humana. Vão à Serra da Ossa, à Serra de Monchique, à Serra do Cercal, que outrora deu o nome a Vila Nova de Milfontes, e contem quantas fontes, quantos animais selvagens, quantos pássaros, quantas pessoas lá encontram: zero.
O eucalipto é, por si só, o maior factor de desertificação do país, e a desertificação do país é o nosso problema número um. Não vale a pena falarem em descentralização, nem em ocupação do interior nem em valorização do mundo rural, enquanto estivermos submetidos à ditadura do eucalipto. Juntem a isso o conhecimento, hoje absolutamente indisfarçável, de que o eucalipto é, de longe, o maior factor de deflagração de incêndios: o eucalipto mata. Mata a floresta, mata casas, povoações, pessoas. E, como vimos agora, mata rios.
Mata a pesca, a agricultura, a paisagem, o turismo do interior. Com a limpeza dos rios, com as indemnizações às vítimas dos fogos, com os negócios e negociatas à volta do combate aos incêndios, só de custos directos a indústria de celuloses custa uma fortuna aos contribuintes. Mas quem se quiser deitar a pensar quanto mais custa ao país e aos contribuintes o abandono dos campos e a desertificação de todo o interior, rapidamente chegará à conclusão que 1300 milhões não são nada comparados com isso.
Restam os postos de trabalho que se perderiam. Mas chamo a atenção para os estudos recentes que têm vindo a público e que nos dizem que, com a quebra da natalidade e o envelhecimento demográfico galopante que temos, o nosso principal problema em breve vai ser a escassez de dezenas, e logo centenas, de milhares de postos de trabalho na indústria, se quisermos continuar a crescer. Só é preciso ter a coragem de mudar de paradigma. Sairmos de um pensamento de país terceiro-mundista.


MIGUEL SOUSA TAVARES

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