PARA MEMÓRIA FUTURA.
(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 07/03/2020)
1
Que estávamos prontos, diziam-nos. Mais do que prontos e
preparadíssimos. A directora-geral repetia as conferências de imprensa
para dizer o mesmo e coisa nenhuma e chamava as televisões para mostrar
dois quartos de isolamento à espera de doentes infectados, que não
existiam ainda e anunciava um — um — laboratório nacional para proceder
às análises dos suspeitos: estávamos preparadíssimos, insistia a
senhora, sempre sorridente. É verdade que tínhamos tido mais tempo do
que quaisquer outros para nos preparamos, pois o vírus parecia querer
viajar por todo o lado menos por aqui. E, por isso, estávamos
preparadíssimos e a ministra e a directora podiam entreter-se a dar-nos
novas diárias do nosso único infectado, lá longe, num paquete japonês em
Hong Kong. Assim, parecia fácil estar preparado, mas, perguntava-me eu,
como podíamos ter tanta certeza de estarmos prontos e preparadíssimos
se ninguém podia dizer ao certo o que aí vinha? E se, ao primeiro alarme
de um suspeito de infecção, com tudo preparadíssimo, o desgraçado ficou
quatro horas trancado dentro de uma ambulância porque ninguém sabia o
que lhe fazer? Mas, enfim, temos de confiar em quem é pago por nós para
fazer este trabalho e teve uma vida profissional inteira para estar
preparado para o desempenhar.
Porém,
as coisas tornaram-se verdadeiramente alarmantes quando, no sábado, a
directora resolveu anunciar no Expresso que estava a contar com um
milhão de infectados em Portugal — o que, com uma taxa de mortalidade
que varia entre os 2,3% e os 3,6%, significa 23 mil a 36 mil mortes, uma
razia. Mas logo no domingo forçaram-na a confusas explicações
complementares, que não sossegaram tanto como o facto de percebermos que
a senhora falava simplesmente à toa.
Não
me admirou assim muito parecer-me detectar até uma certa alegria e
alívio quando, na segunda de manhã, a ministra e a directora convocaram
uma conferência de imprensa para anunciarem ao país, sorridentes, que
finalmente havia não um mas logo dois casos de coronavírus confirmados
em Portugal. Enfim, entrávamos no mapa dos países importantes e toda a
nossa preparação, ensaiada e apregoada durante um mês, ia ser posta à
prova. E, se bem que se tenha seguido o inevitável circo mediático à
volta dos nossos pioneiros, julgo ser possível afirmar que, excepção
feita aos ociosos imbecis do costume, a pátria não entrou em paranóia.
Mas eis que a incontinente directora insiste em tranquilizar-nos: vai à
RTP declarar que, não obstante o país estar preparadíssimo, só aqueles
dois primeiros casos já tinham esgotado toda a capacidade de
internamento dos hospitais do Porto. Como? Que foi que ela disse? Esta
senhora é o general a quem confiaram a batalha contra o coronavírus?
Mais vale fugir para a China...
E
entra então em cena o Governo, com António Costa à cabeça, como seria
de esperar. E para grande impaciência de Marcelo, frustrado por ter de
ceder a primazia ao ‘poder executivo’ — haja incêndio ou epidemia,
futebol ou romaria, certas coisas nunca mudam. Costa precipitou-se então
para os hospitais do Porto, para anunciar não duas mas 2 mil camas ou
quartos, e a nova moda da ‘saudação à alemã’. E €100 milhões de crédito
para os empresários, “se necessário”. De caminho, o eficientíssimo
Eduardo Cabrita resolveu também mostrar-se às televisões, convocando uma
reunião de emergência da Protecção Civil — esse organismo utilíssimo
para nos mandar agasalhar no Inverno e vestir roupas leves no Verão. Lá
estavam todos os suspeitos do costume, entre os quais o inefável e
eterno Jaime Marta Soares, dos bombeiros e do Sporting, de Bruno de
Carvalho. Fiquei seguro de que o coronavírus não passará, estamos
protegidíssimos!
Entretanto,
enquanto o número de infectados crescia à média estável de dois por dia
(até quinta-feira, quando escrevo), descobriu-se que a célebre Linha de
Saúde 24 — para que todos, a começar pelo primeiro-ministro, apelam que
se ligue à menor suspeita — só dava vazão a parte das chamadas e a
linha de apoio aos médicos às vezes só atende no dia seguinte. Faltam
instruções claras, falta pessoal, faltam instalações onde isolar casos
suspeitos nos centros de saúde, falta material de enfermagem adequado
para a situação. Enfim, estávamos preparadíssimos...
E
quando na quarta-feira, na Assembleia da República, André Ventura (que
desta vez não foi calado por Ferro Rodrigues) fez a pergunta que se
impunha mas que não deveria ser politicamente correcta — se o Governo
não pensava demitir a directora-geral responsável por tanta preparação e
tanto alarmismo causado em tão pouco tempo — António Costa respondeu
que não se muda de general a meio da batalha. Fala de alto o
primeiro-ministro: fala de alto, porque só numa visão muito optimista é
que a batalha já vai a meio e não apenas no início. E fala com
desconhecimento da história, que está repleta de exemplos de desastres
revertidos em sucessos por se ter mudado de general a tempo. Mas se as
coisas apertarem mesmo a sério, o primeiro-ministro aprenderá à sua
custa que o sagrado princípio da inamovibilidade dos funcionários
públicos portugueses não é o mais importante aqui.
Mas vamos confiar na sorte e no optimismo de António Costa. E, sobretudo, confiar nos médicos, enfermeiros e auxiliares. Ou, para quem preferir, na Senhora de Fátima.
2
Imagine um mundo em que quase um terço das emissões de CO2 lançadas
diariamente para a atmosfera desapareceu de um dia para o outro: os céus
da China limpos da queima insaciável de combustíveis fósseis, a que se
junta a redução acrescentada pela queda brutal das viagens de avião e da
circulação dos imensos paquetes de passageiros, outrora um sinal de
festa e hoje a nova praga das cidades costeiras. Imagine Veneza,
Florença, Paris, São Petersburgo, Istambul desertas de multidões de
chineses, coreanos, russos; museus onde se pode entrar e percorrer as
salas: cafés onde se pode estar sentado; praças para onde se pode olhar.
Imagine uma quantidade de gente com mais tempo para si, para a família,
para os amigos, com menos pressa para tudo. Imagine gente a trabalhar a
partir de casa, produzindo o mesmo e gerindo o seu próprio tempo de
trabalho, gastando menos, poluindo menos, aliviando o trânsito. Imagine
que de repente desapareceu a febre do consumismo supérfluo e que as
pessoas se põem a pensar nas coisas que são verdadeiramente importantes.
Imagine que um medo e uma apreensão global faz com que a necessidade de
se andar informado faça as pessoas afastarem-se dos pântanos de
intrigas e mentiras das redes sociais e regressem à informação de
referência, onde está o serviço público de que necessitam. E imagine
que, apesar do medo e da apreensão, porque somos seres humanos, somos
desafiados a enfrentá-lo, a resistir-lhe e a combatê-lo, contra o
egoísmo, o alarmismo e a irracionalidade alarve das massas, e a
portarmo-nos como seres humanos. Isto, esta utopia, está a acontecer
agora. Sob os nossos olhos e graças ao coronavírus. A forma como nos
comportarmos vai ser tão importante, em termos de reflexão, como vai
ser, em termos científicos, a forma como o vírus for vencido. Mas, até
lá, esta pausa, esta suspensão do mundo tal como o conhecemos, já é um
excelente tema de reflexão.
Claro
que não é sequer pensável suster o mundo, como agora está forçadamente,
de forma permanente. A mudança teria de ser feita de forma gradual,
global e planeada. Mas também não é possível continuar a assentar um
futuro sustentável numa fórmula que se traduz em mais, mais e sempre
mais, de tudo: mais população, mais queima de resíduos fósseis, mais
emissões poluentes, mais contaminação dos oceanos, mais desflorestação,
mais incêndios, mais aviões nos céus, mais turismo de massas, mais
agricultura intensiva, mais cidades megalómanas. Sabemos que temos de
viver de outra maneira, mas não queremos ou não acreditamos que seja
possível. E porque não o será?
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia
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