LOBOS

Sou, na verdade, o Lobo da Estepe, como me digo tantas vezes – aquele animal extraviado que não encontra abrigo nem na alegria nem alimento num mundo que lhe é estranho e incompreensível

Herman Hesse

domingo, 23 de julho de 2017

RETRATOS no SILÊNCIO







ESCELSA MARIA VIEIRA
84 anos
CONTÍNUA

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Uma foto, um nome e  um padrão gráfico (LETRAS e PALAVRAS), registam a última passagem, cá deste lado da fronteira para o oculto mistério da eternidade.
Poderia  desta forma simples, reduzir uma longa vida de uma SENHORA que fez parte das nosso crescimento- ninguém ficaria a saber quem foi ESCELSA, nem eu a conhecia por este nome. 
No registo fotográfico!... Só as minhas memórias mais longínquas, trouxeram ao presente a importância de tal personagem, que nunca esqueci. Estando (somente) adormecida no meu sótão das memórias. Mulher elegante, educada, profissional (FINA). Este acrescento  de pouco serviria para alguém encontar (E)  nas recordações,,, só os familiares chegados ,,, estes sim saberiam, quem foi esta mulher? QUE dos lados do Barreiro, aportou a Estremoz e por lá ficou até ao dia 22 de Junho DE 2017.  



Para mim (E) representa muitos rostos e muitas mais recordações- não aspiro escrever  nenhum artigo emotivo, nem contar grandes histórias . Dela  retenho algumas imagens acompanhadas de silêncio. Sempre na antiga Biblioteca da Escola Industrial e Comercial de Estremoz. Espaço de reflexão  de trabalho, concentração e estudo. Situava-se  no eixo central do edifício e no segundo andar ficava um espaço iluminado por um "MURO" de janelas, chão envernizado e limpo. 
Escelsa sentada numa pequena secretária no canto direito,  mantinha um rigoroso silêncio e controlava todas as anormalidades  que pusessem em causa o ambiente desta sala de pesquisas e invenções.
Foi naqueles tempos uma mulher bonita, elegante mas com uma certa tristeza (introspectiva) instalada permanentemente no seu rosto. Este rosto da fotografia que anuncia a sua partida definitiva. Não nos dava muita confiança, mas também não era indelicada-quase sempre sozinha nos seus movimentos na grande ESCOLA, foi  pessoa de pouca conversa. Reencontrei-me com a CONTÍNUA,   quase duas décadas depois, quando regressei como PROFESSOR à agora rebaptizada Escola Secundária Rainha Santa Isabel.  Do lado esquerdo da entrada principal , estava a recepção e o telefone, foi nesse lugar que a encontrei, falámos um pouco e por minha persistência. Não se lembraria de mim  com toda a certeza,  disse-me que tinha estado em Sousel. Não sei porquê Sousel, se tinha sido todos aqueles anos funcionária da ESCOLA em Estremoz.
Continuava a mulher elegante, bem vestida e com a serenidade igual a quando deixei os estudos secundários. Porém revestida da mesma fragilidade que sempre lhe conheci e ela tentava disfarçar.
Hoje passaram 27 anos e  numa foto quase "ilegível" de um jornal da terra. Partiu a Escelsa...um pequeno texto marca a última "pegada" nesta terra hoje cheia de incertezas e indefinições. E vazia de significado das pessoas importantes das nossas vidas.

Uma vida longa reduzida a um pequeno texto, a lição que todos deveríamos aprender muito antes de nos tornarmos pessoas complexas e exigentes. 
Tocou-me a sua presença a preto e branco, no quinzenário BRADOS.  





O rosto do recorte dos Brados do Alentejo, é o dos tempos da BIBLIOTECA. Surgem-me  na memória-outras CONTÍNUAS da minha ESCOLA. Esta carteira  construída para durar algumas gerações, representa a BELEZA de ESCELSA-é um símbolo de um TEMPO enterrado aos poucos, levado pela ausência de muitas  destas empregadas como as apelidávamos, algumas já desaparecidas. As cozinheiras no refeitório, que nunca nos serviam à míngua. A mãe do Raul Alberto Glórias Caeiro. A Balbina, mãe do PULGA que protagonizou a história em "jeito" de escândalo com o chefe João Modas... DONA CARAPETA da papelaria e do armazém e a Violante com o seu penteado e sorriso inconfundíveis . A mulher do Sr. Mendes que ainda por cá está assim como algumas que referi. Todas estas SENHORAS tinham uma função. Todas elas presentes no lugar para o qual as destinaram a estarem  semana após semana. Naqueles tempos (FASCISTAS), não se  constava a existência de corredores vazios, pátios cheios de ervas ou salas a serem lavadas à mangueirada. 

Fruto dizem, da falta de funcionários  e do envelhecimento dos que constituem hoje os quadros das ESCOLAS.


PROFESSORES à procura de apoio, fazendo uma travessia  no deserto labiríntico  entre duas paredes, procurando nas secretárias uma alma de bata cinzenta ou azul vestida, difícil tarefa. As  TÉCNICAS SUPERIORES AUXILIARES da EDUCAÇÃO, penso que  é assim que se chamam hoje, NOS TEMPOS DO "ARREMEDEIO" CONTÍNUAS QUE SE movimentavam num sistema de "máquinas bem oleadas", com um só objectivo! Cumprirem  o que lhes estava destinado, servirem a ESCOLA e os ALUNOS ... Sem sapatos de tacão com 15 cm de altura e a bandearem o "SALERO".

Esta carteira, restaurada em 2017 "ANIMAL RARO", com cara limpa para "viajar" com destino a algum "CIRCO" de anormalidades, ou um museu familiar...representa para mim
SOLIDEZ, organização, planificação, respeito, dinamismo, SONHO e construção, é o que resta dos tempos de ESCELSA. Foi assim a ESCOLA, daqueles anos,,, nos quais a SENHORA ELEGANTE, de uma beleza discreta  NOS AJUDOU COM A SUA FIRMEZA e competência a CRESCERMOS seguros e felizes NA E.I.C.  de ESTREMOZ.




A GERAÇÃO QUE SE SEGUE NESTA GRANDE VIAGEM  DE PASSAGEM PARA A ÚLTIMA FRONTEIRA, será a NOSSA, LEVAREMOS CONNOSCO, os ÚLTIMOS SÍMBOLOS de UMA ESCOLA BEM ESTRUTURADA, que FOI O ENSINO no ESTADO NOVO.


ESCELSA VIEIRA TIA do VIEIRA, FICARÁ NA MINHA MEMÓRIA, COMO a CONTÍNUA, SILENCIOSA, APRUMADINHA E RIGOROSA, a que POUCO SORRIA. MAS, QUE SEMPRE ESTEVE PRESENTE nas nossas VIDAS.
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Outras AUSÊNCIAS

MARCANTES




O silêncio do fogo na voz da dor...

Carta de uma mãe que perdeu o filho em Pedrógão Grande.

 Estamos tão cansados, mas não podemos estar. Os mortos não se calam e não nos deixam cansar. Gritam por Justiça! Exigem Mudança!


A perda de dezenas de vidas e de forma tão trágica que roça a loucura deixou uma sociedade e todo o seu contexto à volta num luto imposto. A vida acabou ali, naquela estrada para muitas pessoas. Inocentes. E acabou também parte de uma vida para os que ficaram. Os que ficámos, ficámos mais pobres, mais sós, apenas com o alento das memórias, mas com a revolta de toda esta situação. São filhos sem pais. São pais sem filhos... são casas sem gente, é gente sem gente, não é natural!
Olho à volta e as pessoas não se riem, choram sozinhas, acanhadas, não se olham nos olhos, com vergonha pela sua impotência, com medo; o cenário é deprimente e não nos ajuda a superar com dignidade a tragédia. O Inverno não tarda e com ele as ruas despidas de vida. Despidas de ainda mais vida.
Há rancor, ressentimento com o território e com as entidades públicas. O Estado falhou. A Nação não existiu.
Mas não falhou apenas nesta tragédia. O Estado vem falhando ao longo de décadas. O Estado padece de uma cegueira crónica, está enfermo de um tal sentimento de negação de si próprio. Nega o seu estado de país rural, um país orgulhosamente rural e por isso mesmo rico.

Enquanto Estado é um conceito frio, masculinizado, distante, de um ente que impõe tributos e leis aos seus súbditos, um amontoado de entidades supostamente hierarquizadas, com dirigentes supostamente competentes, e que supostamente deveriam cumprir e fazer cumprir um conjunto de leis e regras que se vão aprovando (ou não!) conforme as vontades políticas da estação. 


Assim se vai governando Portugal. Sem pactos de regime e visão a longo prazo. Vão-se puxando o tapete uns aos outros, não se apercebendo que, por fim, só restam cacos, dor e tristeza para governar.
 

Nação, por sua vez, é um conceito acolhedor, integrador, feminino, belo, quase maternal, que agrega o seu Povo e o seu Território. É o que dá sentido à reunião das pessoas num determinado território a que chamamos “a nossa terrinha”, “o nosso cantinho a beira-mar plantado”, a proa desta “jangada de pedra”. Portugal.
O Estado falhou nesta tragédia levando consigo o sentimento de pertença de Nação que tínhamos. O Estado não protegeu a sua Nação. Não assegurou o seu Território e com ele o seu Povo...
Fomos vítimas desta ausência insuportável de Estado. Ontem e hoje. Mas não amanhã. Porque já chega de incêndios que ceifam vidas. Incêndios como os de 2003, 2005 e Junho de 2017, e que contabilizam, até a data, 100 vítimas mortais em solo português, não podem voltar a acontecer. É hora de todos dizermos “Basta!”. Este Estado que não quer ver secou uma parte importante da sua Nação, aquela que moveu este país por séculos, o Interior.
A primeira muralha e frente de defesa do País no passado contra as invasões estrangeiras, o celeiro do País em tempo de vacas magras, o emissor de soldados nas guerras ultramarinas, o mercado de mão-de-obra barata em tempos de construção europeia... Quando o Interior e os seus recursos já não eram precisos, substituídos pela oferta de bens e serviços mais baratos, o Povo e o Território do Interior foram abandonados À sua sorte. Emigrem! E assim o fizeram, abandonados à sua sorte.
Não houve solidariedade em tempos de vacas gordas, não houve estratégia para o Território quando os dinheiros dos Fundos Estruturais Europeus chegavam a rodos. Foram anos de esquecimento, de esvaziamento progressivo e consistente das instituições regionais e locais, depois seguiram-se as empresas e, por fim, as pessoas. Sobreviver é preciso.
Foram sucessivas décadas de descaso com o Interior, de negligência com o Território, com a Floresta e a Agricultura. Tendo como consequência a emigração das pessoas em idade ativa, restando uma população envelhecida e empobrecida a exigir cuidados redobrados do pouco Estado que restou e que nos foi esventrado e sobretudo das autarquias locais e misericórdias.
Parecia propositado... o Interior tornou-se terra de ninguém, envergonhado de o ser, abandonado e, assim, por fim, vergado.
Deveríamos dar graças por nos termos tornado a maior região eucaliptizada da Europa... Fomos “agraciados” pela falta de oportunidade! O Território estava a saldos e ninguém quis saber.
O Interior tornou-se um canteiro de ervas daninhas, sem jardineiros — as suas gentes. Um barril de pólvora em que se soma a indústria do fogo institucionalizada e um qualquer ano eleitoral. Os ingredientes ideais para a tempestade perfeita.


A tragédia de 17 a 24 de junho de 2017 estava mais que anunciada. Foi apenas uma questão de tempo... e o tempo não pára! E com ele foram muitas vidas abreviadas. Cedo demais... Cedo demais!
Por ti, meu filho...
Nádia Piazza, mãe de uma criança de cinco anos que morreu a 17 de Junho de 2017 em Pedrógão Grande
(Jornal PÚBLICO-23 de julho de 2017)
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