LOBOS

Sou, na verdade, o Lobo da Estepe, como me digo tantas vezes – aquele animal extraviado que não encontra abrigo nem na alegria nem alimento num mundo que lhe é estranho e incompreensível

Herman Hesse

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

VIRTUAL




O miúdo do restaurante !









Entrei apressado, e com muita fome, no restaurante. Escolhi uma mesa bem afastada do movimento, porque queria aproveitar os poucos minutos que dispunha naquele dia, para comer e acertar alguns bugs de programação num sistema que estava a desenvolver, além de planear a minha viagem de férias, coisa que há muito tempo não sei o que são.

Pedi um filete de salmão com alcaparras em manteiga, uma salada e um sumo de laranja, afinal de contas fome é fome, mas regime é regime não é?

Abri o meu portátil e apanhei um susto com aquela voz baixinha atrás de mim:

- Senhor, não tem umas moedinhas?
- Não tenho, menino.
- Só uma moedinha para comprar um pão.
- Está bem, eu compro um.


Para variar, a minha caixa de entrada estava cheia de e-mail.
Fico distraído a ver poesias, as formatações lindas, rindo com piadas malucas....
Ah! Esta música leva-me até Londres e às boas lembranças de tempos áureos.


- Senhor, peça para colocar margarina e queijo.


Percebo, nessa altura, que o menino tinha ficado ali.
- Ok. Vou pedir, mas depois deixas-me trabalhar, estou muito ocupado, está bem?

Chega a minha refeição e com ela o meu mal-estar. Faço o pedido do pequeno, e o empregado pergunta-me se quero que mande o menino embora.
O peso na consciência, impedem-me de o dizer.
Digo que está tudo bem. Deixe-o ficar. Que traga o pão e, mais uma refeição decente para ele.

Então sentou-se à minha frente e perguntou:

- Senhor o que está fazer?
- Estou a ler uns e-mail.
- O que são e-mail?


 
- São mensagens electrónicas mandadas por pessoas via Internet (sabia que ele não ia entender nada, mas a título de livrar-me de mais  questionários):
- É como se fosse uma carta, só que é pela  Internet.
- E o senhor tem Internet?
- Tenho sim, essencial no mundo de hoje.
- O que é Internet ?

- É um local no computador, onde podemos ver e ouvir muitas coisas: notícias, músicas, conhecer pessoas, ler, escrever, sonhar, trabalhar,  aprender. Tem de tudo no mundo virtual.



- E o que é virtual?

Resolvo dar uma explicação simplificada, sabendo, com certeza, que ele pouco ou nada ia entender e iria deixar-me almoçar, em paz.

- Virtual é um local que imaginamos, coisas que não podemos tocar, apanhar, mexer... é lá que criamos um monte de coisas que gostaríamos de fazer.
Criamos as nossas fantasias, transformamos o mundo, quase como queríamos que fosse.
- Que bom....  Gosto disso!
- Menino, entendeste o significado da palavra virtual?
- Sim, também vivo nesse mundo virtual.
- Tens computador?! - Exclamo eu!!!

- Não, mas o meu mundo também é vivido dessa maneira...  Virtual.....


A minha mãe fica todo dia fora, chega muito tarde, quase não a vejo. Eu fico a cuidar do meu irmão pequeno que vive a chorar de fome e eu dou-lhe água para ele pensar que é sopa, a minha irmã mais velha sai todo dia também, diz que vai vender o corpo, mas não entendo, porque ela volta sempre com o corpo. O meu pai está na cadeia há muito tempo, mas imagino sempre a nossa família toda junta em casa, muita comida, muitos brinquedos de natal e eu a estudar na escola para vir a ser médico um dia.

Isto é virtual não é senhor  ???

Fechei o portátil, mas não fui a tempo de impedir que as lágrimas caíssem sobre o teclado.
Esperei que o menino acabasse de, literalmente, "devorar" o prato dele. Paguei, e dei-lhe o troco, e ele retribuiu-me  com um dos mais belos e sinceros sorrisos que já recebi na vida e com um "Brigado senhor, é muito simpático!'.


Ali, naquele instante, tive a maior prova do virtualismo insensato em que vivemos todos os dias, enquanto a realidade cruel nos rodeia de verdade e fazemos de conta que não percebemos !
( REEN...HELDER LOUREIRO)





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