A sua defesa do respeito pela morte parte do princípio de que saber viver é saber morrer. Não é apenas nos últimos dias, mas deve ser uma aprendizagem. Por que diz isso?
Porque há
uma ilusão de que não falar da morte faz com que ela não aconteça. É um medo, é
um tabu, uma vergonha a respeito de algo que faz absolutamente parte da
natureza humana. Então eu digo que, se você não falar da morte, não tem
problema, vai morrer também. Mas se você falar dela nos dias que antecedem a
sua morte, desde o dia em que começou a falar dela, são dias muito mais
valiosos. Você começa a olhar para esses dias com muita importância, muito
valor.
“Hoje temos uma espécie de balcanização a ocidente”
Toda a sua prática de paliativos assenta
em princípios que tentam contrariar a concepção dominante no Ocidente do medo
da morte. Como chegou a essa tentativa de desconstrução do momento da morte?
Os cuidados paliativos oferecem às pessoas a oportunidade de viver até ao dia em que a morte chega. Ao contrário do que se pensa, ou seja, que os cuidados paliativos ajudam as pessoas a morrer — não ajudamos ninguém a morrer. As pessoas morrem, elas já nascem com essa capacidade inata.
É a única coisa certa.
No seu livro fica perceptível, porque até é assumido, que o seu pensamento e as suas reflexões têm influência da filosofia budista. Como chegou ao budismo?
Comecei a
praticar meditação desde muito jovem. Entendi que esse estado de presença traz
essa percepção muito valiosa de vida. O estudo da medicina tibetana e chinesa
traz, para mim, muita clareza sobre o que é o processo de morte. Coisa que a
medicina ocidental não traz. O processo activo de morte é algo que é misterioso
para a medicina ocidental. O primeiro artigo que foi publicado a respeito disso
é de há dois ou três anos.
Aliás, diz no livro, que durante a sua formação médica aprendeu a lidar com doenças, não com a vida nem com a morte.
Exactamente.
Portanto, considera mesmo que a filosofia budista ensina a viver a morte de uma forma mais consciente, mais sábia?
Penso que a filosofia budista traz essa serenidade, que o pensamento ocidental não tem. O ocidental entra em desespero quando entra no tema da morte ou na evidência da morte de alguém que ama. Ou, quando alguém que está gravemente doente na família, entra em desespero. Não consegue perceber que esse espaço do adoecimento é uma jornada, é um pedaço do caminho. Na filosofia oriental e budista, isso é parte de um processo de entendimento do que é a vida. É um caminho de lucidez, de aprendizagem. O Ocidente não encara isso. Tem a questão da guerra contra a doença, a guerra contra o cancro, a guerra contra a diabetes — é sempre uma guerra. Não é possível através da guerra ter alguém que ganha e vence. Todos perdem. Temos de encarar a morte como um pedaço da vida e trilhar isso de uma maneira honesta, inteira, acolhida, cuidada.
"A compaixão é um caminho natural de respeito pelo outro. Eu não o invado com a minha perspectiva do que é uma vida boa; você diz-me como que é e eu te ajudo a viver a vida que você quer levar"
Muito presente na defesa que faz de cuidados paliativos está o conceito budista de compaixão, que não é o conceito católico de compaixão. É o reconhecimento de que os outros são movidos, como nós, pela busca de felicidade e de que é preciso respeitar e dar espaço a essas aspirações e individuais de todos. Como é possível fazer uma medicina paliativa, baseada neste respeito do outro, nos hospitais do Brasil, dePortugal, do mundo ocidental?
O mundo
ocidental tem uma compreensão bastante sensível, muito bonita a respeito da
compaixão. Mesmo que não acreditemos na filosofia budista, na nossa cultura, o
respeito pelo outro é o respeito pelo espaço que Deus habita; se somos todos
feitos à imagem e semelhança de Deus, o meu paciente é-o também. E o que tenho
de sagrado ofereço ao sagrado dele. A compaixão é um caminho natural de
respeito pelo outro. Eu não o invado com a minha perspectiva do que é uma vida
boa, você diz-me como é e eu te ajudo a viver a vida que você quer levar. Aí,
tudo o que tenho de sagrado para te respeitar é oferecido para que você possa
se sentir bem dentro da vida que você tem e completar a sua história. Até no
contexto ocidental, o espaço da compaixão, o espaço pelo respeito da vontade do
outro é sagrado e é bem-vindo. Mas, muitas vezes, é esquecido.
Em paliativos isso é respeitado?
Tem de ser,
sobretudo, em todos os momentos. Mas, quando está diante de uma doença que
ameaça a sua vida, precisa de perceber o respeito que o outro tem por si, para
poder respeitar-se. Às vezes, perdemo-nos no sofrimento. Quando você percebe
que eu a respeito, você valoriza-se. Começa a pensar: a equipa toda
respeita-me, então não sou uma perdedora por estar muito doente. Estou vivendo
a vida que tenho para viver. Às vezes, as pessoas vão pelo caminho difícil. Eu
costumo dizer que, às vezes, as pessoas querem ir para o inferno. Mas elas não
podem ir sozinhas, temos de acompanhá-las, sabendo que estamos no inferno mas
não somos parte dele.
Ajudar a encontrar o apaziguamento?
Exactamente, exactamente isso.
No livro relata parte da sua experiência a acompanhar a morte de ricos e de pobres. Em São Paulo, dirigiu os paliativos, numa instituição para pessoas que podem pagar, o Hospital Israelita Alberto Einstein, mas também dirigiu os paliativos para pessoas sem recursos e mesmo sem-abrigo, no Hospício do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo. Quais as diferenças principais nestes dois universos? Há alguma diferença, por exemplo, na forma como os ricos ou os muito ricos e os pobres ou os excluídos da sociedade vivem a morte? Morremos todos da mesma maneira?
Essa foi uma descoberta
muito bela. Não há diferença no sofrimento que é vivido, no medo, no sentimento
de culpa, no arrependimento, na amorosidade, não tem diferença. Só muda o
figurino. Muda o espaço físico. No Hospício do Hospital das Clínicas, quando lá
estava, os quartos eram duplos e aí não havia o nome chique da solidão, que é a
privacidade. Ninguém estava só. Havia sempre outro e os seus familiares. Havia
um compartilhar, um acolhimento, um apaziguamento, essa palavra bonita. Num
hospital privado, há muita solidão. Uma das coisas mais difíceis, quando temos
grandes recursos, é a solidão. Você tem a impressão de que, porque tem
dinheiro, porque tem poder, pode comprar tudo. Mas você não pode comprar a
qualidade das relações. Às vezes, é mais desafiador você ter boas relações na
medida em que se diferencia muito, do que quando é um igual nas dificuldades.
Outra coisa que é muito significativa é a sensação de vida plena. As pessoas
mais humildes têm uma percepção de plenitude muito mais acessível do que a
pessoa que é não só muito rica; às vezes, quando é muito rica intelectualmente,
ela também se perde nos valores dela. Cuidei de uma senhora que era lavadeira,
lavava roupa para fora, tinha nove filhos, acordava às quatro da manhã e ia até
de noite lavando roupa para fora. Ela criou os nove filhos e vários deles foram
para a universidade. Ela terminou a vida olhando em volta e disse: “Consegui.”
Ela só tinha um caminho, era a única coisa que ela sabia, era lavar roupa. E
ela lavou roupa da melhor forma que podia, com o maior empenho. Um empresário,
às vezes, tem mil opções de trabalho e de rendimentos e olha para a família e
vê que estão todos tão perdidos e diz: “Que sentido tem isto?”
As atitudes de ansiedade perante a morte e de rejeição de pensar o momento são diferentes consoante esse nível de vida ou cultural?
"A eutanásia eu vejo como uma grande perda, uma grande perda de oportunidade de você viver a sua história. Porque quando você fala da eutanásia está a falar de controlo.
No livro, afirma que, durante a sua formação como
médica no Brasil, não teve qualquer preparação para lidar com a morte, só com a
doença. Hoje, sente que a situação mudou? Ou o seu trabalho ainda é uma gota no
oceano?
Já somos uma
piscininha. Nas 330 faculdades de Medicina do Brasil, cerca de 50 têm cuidados
paliativos. Existe um movimento maravilhoso dos alunos sobre paliativos. Sou
muito convidada. Quase todas as semanas vou a uma faculdade para dar uma aula a
pedido dos alunos. Vejo, com muita alegria, que o futuro nos reserva algo muito
melhor. Porque quem está estudando quer aprender. O que ainda não há é muitas
pessoas que ensinem.
Nas sociedades ocidentais investiu-se pouco a este
nível? Ou há países onde é diferente?
É um pouco
diferente. O movimento começa na Europa com a Cicely Saunders, em Londres, na década
de 70 [no século XX]. Na verdade, ela publicou o primeiro artigo em 1967. A
seguir, Elisabeth Kübler-Ross, nos Estados Unidos, fez um trabalho muito
potente em relação a ouvir o paciente. Esse movimento, nas décadas de 80 e de
90, tornou-se muito forte e expandiu-se a necessidade de ter cuidados
paliativos em todos os hospitais. É algo que já faz parte da formação do
médico, mas ainda há muito preconceito, principalmente em relação ao nome. Diz
paliativo e a reacção é: “Não, paliativo é morte, é não fazer nada.” Porque não
há nada para fazer pela doença. E não ensina o médico a não abandonar o
paciente. Quando comecei a fazer cuidados paliativos, há 20 e tal anos,
disseram-me: “Isso é um jeito romântico de fracassar, porque o paciente vai
morrer.” Respondi: “Não, não é fracasso, porque eu sei o que fazer até ao
último dia de vida dele. Aliás, eu sei até o que fazer com a família dele,
depois de ele falecer.” Então eu não sei o que é fracasso, porque, para mim,
fracassar é não saber o que fazer. E, em paliativos, você nunca abandona. Era
bom que todos os médicos pudessem experimentar.
É uma defensora da morte natural, pode explicar o conceito?
O nome técnico da morte natural é “ortotanásia”. Há a eutanásia que é a morte boa, em que o médico aplica um remédio para o paciente morrer, a pedido dele, diante de uma doença que não tem cura. O suicídio assistido é quando os médicos prescrevem uma combinação de medicamentos, em doses letais, e o paciente toma quando ele quer. A ortotanásia é o respeito natural pela evolução da doença. Eu não vou acelerar o processo através da eutanásia e também não vou adiar o processo.
Sim, de
constituir uma série de medidas que substituem as pulsões do corpo, não
regeneram. Na UTI [unidade de terapia intensiva], coloco um tubo para respirar
e substituir o pulmão, mas esse pulmão não se vai regenerar. Faço diálise,
substituo o rim, mas o rim não se vai regenerar. Isto tem como nome técnico a
“distanácia”. É uma tortura, de facto, provoca dor, solidão, desespero,
angústia, fraqueza, piora a percepção do adoecimento. A ortotanásia é a morte
natural, eu vou cuidar da pessoa, vou usar todos os recursos disponíveis para fazer
com que ela se sinta bem e seja feliz. Isso, por incrível que pareça, prolonga
a vida. Os doentes que recebem cuidados paliativos podem viver até cinco meses
a mais do que os que não recebem.
Através de meios de vida artificiais?Por um ânimo novo que ganham?
É uma percepção até biológica do processo,
porque o organismo tende a organizar-se dentro do caos, o caos não é eterno.
Mesmo diante de uma doença grave, se não se fizer intervenções agressivas, o
próprio organismo se reorganiza. E ele restabelece um equilíbrio naquele
contexto. E no equilíbrio você tem mais tempo, o que vai abreviar o seu tempo é
o desequilíbrio.
É, portanto, contra o uso de formas e técnicas de suporte de vida artificial?
O suporte de vida artificial pode ser utilizado em benefício do paciente e da sua percepção do que é importante para ele. Por exemplo, cuidei de uma paciente que tinha um cancro de ovário bastante agressivo e estava a fazer quimioterapia paliativa, não tinha perspectiva de cura. A família dela morava toda no Sul do Brasil e ela em São Paulo. Num determinado ponto da trajectória do tratamento, ela teve uma intercorrência aguda, os leucócitos do sangue e a imunidade caíram e ela começou a ter febre. Ela tinha dito no início do tratamento: “Não quero ir para a UTI de jeito nenhum, não quero prolongamento da minha vida, com sofrimento ligada a aparelhos.” Só que, naquele momento, perguntou-me: “Ana, acha que vai dar tempo da minha família chegar?”. Eu respondi: “Acredito que vamos precisar ir para a UTI, se você quiser despedir-se deles, para dar tempo de eles chegarem.” Ela disse: “Aceito, então.” A indicação da UTI não era para prolongar a vida dela por prolongar, mas para dar tempo da família chegar para se despedir. Assim, você faz as intervenções na medida do que tem valor para o paciente.
Através de meios de vida artificiais?Por um ânimo novo que ganham?
É, portanto, contra o uso de formas e técnicas de suporte de vida artificial?
O suporte de vida artificial pode ser utilizado em benefício do paciente e da sua percepção do que é importante para ele. Por exemplo, cuidei de uma paciente que tinha um cancro de ovário bastante agressivo e estava a fazer quimioterapia paliativa, não tinha perspectiva de cura. A família dela morava toda no Sul do Brasil e ela em São Paulo. Num determinado ponto da trajectória do tratamento, ela teve uma intercorrência aguda, os leucócitos do sangue e a imunidade caíram e ela começou a ter febre. Ela tinha dito no início do tratamento: “Não quero ir para a UTI de jeito nenhum, não quero prolongamento da minha vida, com sofrimento ligada a aparelhos.” Só que, naquele momento, perguntou-me: “Ana, acha que vai dar tempo da minha família chegar?”. Eu respondi: “Acredito que vamos precisar ir para a UTI, se você quiser despedir-se deles, para dar tempo de eles chegarem.” Ela disse: “Aceito, então.” A indicação da UTI não era para prolongar a vida dela por prolongar, mas para dar tempo da família chegar para se despedir. Assim, você faz as intervenções na medida do que tem valor para o paciente.
"Quando
comecei a fazer cuidados paliativos há vinte e tal anos, disseram-me: 'Isso é
um jeito romântico de fracassar, porque o paciente vai morrer.' Respondi: 'Não,
não é fracasso, porque eu sei o que fazer até ao último dia de vida
Já fiz diálise
para um doente de cancro de próstata avançado, porque ele queria conhecer a
neta. Ela tinha mais três semanas de gestação e ele faleceria. Tinha um
sentido, ele queria conhecer a neta. Ele conheceu-a, o primeiro sorriso dela
foi para ele e, depois, ele disse: “Agora a minha vida está plena, não quero
mais fazer diálise.
dele'"No livro percebe-se que também é contra a sedação na fase terminal. Mas ela não é feita porque há dor?
A decisão faz parte da sua história, mas aquele
processo é construído. Ele não aconteceu porque ia acontecer, aconteceu porque
você decidiu.
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