LOBOS

Sou, na verdade, o Lobo da Estepe, como me digo tantas vezes – aquele animal extraviado que não encontra abrigo nem na alegria nem alimento num mundo que lhe é estranho e incompreensível

Herman Hesse

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

FINAL OU RECOMEÇO







A sua defesa do respeito pela morte parte do princípio de que saber viver é saber morrer. Não é apenas nos últimos dias, mas deve ser uma aprendizagem. Por que diz isso?





Porque há uma ilusão de que não falar da morte faz com que ela não aconteça. É um medo, é um tabu, uma vergonha a respeito de algo que faz absolutamente parte da natureza humana. Então eu digo que, se você não falar da morte, não tem problema, vai morrer também. Mas se você falar dela nos dias que antecedem a sua morte, desde o dia em que começou a falar dela, são dias muito mais valiosos. Você começa a olhar para esses dias com muita importância, muito valor.









“Hoje temos uma espécie de balcanização a ocidente”


Toda a sua prática de paliativos assenta em princípios que tentam contrariar a concepção dominante no Ocidente do medo da morte. Como chegou a essa tentativa de desconstrução do momento da morte?


 

Os cuidados paliativos oferecem às pessoas a oportunidade de viver até ao dia em que a morte chega. Ao contrário do que se pensa, ou seja, que os cuidados paliativos ajudam as pessoas a morrer — não ajudamos ninguém a morrer. As pessoas morrem, elas já nascem com essa capacidade inata.






É a única coisa certa.



É a única coisa certa, eu não preciso de ajudar ninguém a morrer. Mas preciso de ajudar as pessoas a viver bem, a habitar esse corpo de uma forma confortável, para poderem viver a intensidade que a vida tem, mas que pela falta da consciência do seu fim, as pessoas não se abrem para isso. Assim, nos últimos dias, nos últimos tempos de vida — podem ser semanas, meses —, quando você tem consciência da sua morte, passa a dar mais valor. Digo sempre que não é necessário estar doente para dar valor, basta que se lembre todos os dias de que a morte vai acontecer na sua vida. O rompimento desse tabu vem a partir de um convite: experimente pensar nisso para poder viver a sua vida de uma forma muito mais realizada. Percebo que quando as pessoas começam a falar sobre este assunto sem estar doentes é como se entrassem num acelerador de felicidade. Você aprende a ter lucidez para as suas decisões, o que é a prioridade, o que é importante para si.




No seu livro fica perceptível, porque até é assumido, que o seu pensamento e as suas reflexões têm influência da filosofia budista. Como chegou ao budismo?



Comecei a praticar meditação desde muito jovem. Entendi que esse estado de presença traz essa percepção muito valiosa de vida. O estudo da medicina tibetana e chinesa traz, para mim, muita clareza sobre o que é o processo de morte. Coisa que a medicina ocidental não traz. O processo activo de morte é algo que é misterioso para a medicina ocidental. O primeiro artigo que foi publicado a respeito disso é de há dois ou três anos.





Aliás, diz no livro, que durante a sua formação médica aprendeu a lidar com doenças, não com a vida nem com a morte.

Exactamente.



Portanto, considera mesmo que a filosofia budista ensina a viver a morte de uma forma mais consciente, mais sábia?


Penso que a filosofia budista traz essa serenidade, que o pensamento ocidental não tem. O ocidental entra em desespero quando entra no tema da morte ou na evidência da morte de alguém que ama. Ou, quando alguém que está gravemente doente na família, entra em desespero. Não consegue perceber que esse espaço do adoecimento é uma jornada, é um pedaço do caminho. Na filosofia oriental e budista, isso é parte de um processo de entendimento do que é a vida. É um caminho de lucidez, de aprendizagem. O Ocidente não encara isso. Tem a questão da guerra contra a doença, a guerra contra o cancro, a guerra contra a diabetes — é sempre uma guerra. Não é possível através da guerra ter alguém que ganha e vence. Todos perdem. Temos de encarar a morte como um pedaço da vida e trilhar isso de uma maneira honesta, inteira, acolhida, cuidada.





PÚBLICO -





"A compaixão é um caminho natural de respeito pelo outro. Eu não o invado com a minha perspectiva do que é uma vida boa; você diz-me como que é e eu te ajudo a viver a vida que você quer levar" 

Muito presente na defesa que faz de cuidados paliativos está o conceito budista de compaixão, que não é o conceito católico de compaixão. É o reconhecimento de que os outros são movidos, como nós, pela busca de felicidade e de que é preciso respeitar e dar espaço a essas aspirações e individuais de todos. Como é possível fazer uma medicina paliativa, baseada neste respeito do outro, nos hospitais do Brasil, dePortugal, do mundo ocidental?




O mundo ocidental tem uma compreensão bastante sensível, muito bonita a respeito da compaixão. Mesmo que não acreditemos na filosofia budista, na nossa cultura, o respeito pelo outro é o respeito pelo espaço que Deus habita; se somos todos feitos à imagem e semelhança de Deus, o meu paciente é-o também. E o que tenho de sagrado ofereço ao sagrado dele. A compaixão é um caminho natural de respeito pelo outro. Eu não o invado com a minha perspectiva do que é uma vida boa, você diz-me como é e eu te ajudo a viver a vida que você quer levar. Aí, tudo o que tenho de sagrado para te respeitar é oferecido para que você possa se sentir bem dentro da vida que você tem e completar a sua história. Até no contexto ocidental, o espaço da compaixão, o espaço pelo respeito da vontade do outro é sagrado e é bem-vindo. Mas, muitas vezes, é esquecido.


Em paliativos isso é respeitado?


Tem de ser, sobretudo, em todos os momentos. Mas, quando está diante de uma doença que ameaça a sua vida, precisa de perceber o respeito que o outro tem por si, para poder respeitar-se. Às vezes, perdemo-nos no sofrimento. Quando você percebe que eu a respeito, você valoriza-se. Começa a pensar: a equipa toda respeita-me, então não sou uma perdedora por estar muito doente. Estou vivendo a vida que tenho para viver. Às vezes, as pessoas vão pelo caminho difícil. Eu costumo dizer que, às vezes, as pessoas querem ir para o inferno. Mas elas não podem ir sozinhas, temos de acompanhá-las, sabendo que estamos no inferno mas não somos parte dele.




Ajudar a encontrar o apaziguamento?
Exactamente, exactamente isso.



No livro relata parte da sua experiência a acompanhar a morte de ricos e de pobres. Em São Paulo, dirigiu os paliativos, numa instituição para pessoas que podem pagar, o Hospital Israelita Alberto Einstein, mas também dirigiu os paliativos para pessoas sem recursos e mesmo sem-abrigo, no Hospício do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo. Quais as diferenças principais nestes dois universos? Há alguma diferença, por exemplo, na forma como os ricos ou os muito ricos e os pobres ou os excluídos da sociedade vivem a morte? Morremos  todos da mesma maneira?




Essa foi uma descoberta muito bela. Não há diferença no sofrimento que é vivido, no medo, no sentimento de culpa, no arrependimento, na amorosidade, não tem diferença. Só muda o figurino. Muda o espaço físico. No Hospício do Hospital das Clínicas, quando lá estava, os quartos eram duplos e aí não havia o nome chique da solidão, que é a privacidade. Ninguém estava só. Havia sempre outro e os seus familiares. Havia um compartilhar, um acolhimento, um apaziguamento, essa palavra bonita. Num hospital privado, há muita solidão. Uma das coisas mais difíceis, quando temos grandes recursos, é a solidão. Você tem a impressão de que, porque tem dinheiro, porque tem poder, pode comprar tudo. Mas você não pode comprar a qualidade das relações. Às vezes, é mais desafiador você ter boas relações na medida em que se diferencia muito, do que quando é um igual nas dificuldades. Outra coisa que é muito significativa é a sensação de vida plena. As pessoas mais humildes têm uma percepção de plenitude muito mais acessível do que a pessoa que é não só muito rica; às vezes, quando é muito rica intelectualmente, ela também se perde nos valores dela. Cuidei de uma senhora que era lavadeira, lavava roupa para fora, tinha nove filhos, acordava às quatro da manhã e ia até de noite lavando roupa para fora. Ela criou os nove filhos e vários deles foram para a universidade. Ela terminou a vida olhando em volta e disse: “Consegui.” Ela só tinha um caminho, era a única coisa que ela sabia, era lavar roupa. E ela lavou roupa da melhor forma que podia, com o maior empenho. Um empresário, às vezes, tem mil opções de trabalho e de rendimentos e olha para a família e vê que estão todos tão perdidos e diz: “Que sentido tem isto?”



As atitudes de ansiedade perante a morte e de rejeição de pensar o momento são diferentes consoante esse nível de vida ou cultural?




Se estabelecêssemos que essa era a única faixa de diferença entre as pessoas, poderia dizer que sim. Quando você tem muitos recursos, acha que é impossível morrer. Não admite. Fica o tempo inteiro buscando tratamento, troca de médico, troca de hospital, vai para os Estados Unidos, vai para a Europa. Tenta resolver, tenta resolver e perde tempo nessa busca e não vive, porque está só buscando. Se essa fosse a única diferença, sim. Mas eu sei que, nesse momento da morte, você tem a chance de encontrar um espaço dentro de si; que não tem mais necessidade de ser quem não é. Há pessoas que são diferentes, que ao mesmo tempo são muito amorosas e entendem que aquilo a que vão dar valor agora é à qualidade das relações. Também há pessoas mais humildes que têm muita dificuldade em viver a vida naquele momento. O carácter de um filho que num hospital luta pelos milhões da herança é o mesmo carácter do filho que briga pelo barraco na favela. A conversa é exactamente a mesma.







PÚBLICO -


"A eutanásia eu vejo como uma grande perda, uma grande perda de oportunidade de você viver a sua história. Porque quando você fala da eutanásia está a falar de controlo.



No livro, afirma que, durante a sua formação como médica no Brasil, não teve qualquer preparação para lidar com a morte, só com a doença. Hoje, sente que a situação mudou? Ou o seu trabalho ainda é uma gota no oceano?

Já somos uma piscininha. Nas 330 faculdades de Medicina do Brasil, cerca de 50 têm cuidados paliativos. Existe um movimento maravilhoso dos alunos sobre paliativos. Sou muito convidada. Quase todas as semanas vou a uma faculdade para dar uma aula a pedido dos alunos. Vejo, com muita alegria, que o futuro nos reserva algo muito melhor. Porque quem está estudando quer aprender. O que ainda não há é muitas pessoas que ensinem.



Nas sociedades ocidentais investiu-se pouco a este nível? Ou há países onde é diferente?

É um pouco diferente. O movimento começa na Europa com a Cicely Saunders, em Londres, na década de 70 [no século XX]. Na verdade, ela publicou o primeiro artigo em 1967. A seguir, Elisabeth Kübler-Ross, nos Estados Unidos, fez um trabalho muito potente em relação a ouvir o paciente. Esse movimento, nas décadas de 80 e de 90, tornou-se muito forte e expandiu-se a necessidade de ter cuidados paliativos em todos os hospitais. É algo que já faz parte da formação do médico, mas ainda há muito preconceito, principalmente em relação ao nome. Diz paliativo e a reacção é: “Não, paliativo é morte, é não fazer nada.” Porque não há nada para fazer pela doença. E não ensina o médico a não abandonar o paciente. Quando comecei a fazer cuidados paliativos, há 20 e tal anos, disseram-me: “Isso é um jeito romântico de fracassar, porque o paciente vai morrer.” Respondi: “Não, não é fracasso, porque eu sei o que fazer até ao último dia de vida dele. Aliás, eu sei até o que fazer com a família dele, depois de ele falecer.” Então eu não sei o que é fracasso, porque, para mim, fracassar é não saber o que fazer. E, em paliativos, você nunca abandona. Era bom que todos os médicos pudessem experimentar.



É uma defensora da morte natural, pode explicar o conceito?
O nome técnico da morte natural é “ortotanásia”. Há a eutanásia que é a morte boa, em que o médico aplica um remédio para o paciente morrer, a pedido dele, diante de uma doença que não tem cura. O suicídio assistido é quando os médicos prescrevem uma combinação de medicamentos, em doses letais, e o paciente toma quando ele quer. A ortotanásia é o respeito natural pela evolução da doença. Eu não vou acelerar o processo através da eutanásia e também não vou adiar o processo.








Sim, de constituir uma série de medidas que substituem as pulsões do corpo, não regeneram. Na UTI [unidade de terapia intensiva], coloco um tubo para respirar e substituir o pulmão, mas esse pulmão não se vai regenerar. Faço diálise, substituo o rim, mas o rim não se vai regenerar. Isto tem como nome técnico a “distanácia”. É uma tortura, de facto, provoca dor, solidão, desespero, angústia, fraqueza, piora a percepção do adoecimento. A ortotanásia é a morte natural, eu vou cuidar da pessoa, vou usar todos os recursos disponíveis para fazer com que ela se sinta bem e seja feliz. Isso, por incrível que pareça, prolonga a vida. Os doentes que recebem cuidados paliativos podem viver até cinco meses a mais do que os que não recebem.




Através de meios de vida artificiais?Por um ânimo novo que ganham?


É uma percepção até biológica do processo, porque o organismo tende a organizar-se dentro do caos, o caos não é eterno. Mesmo diante de uma doença grave, se não se fizer intervenções agressivas, o próprio organismo se reorganiza. E ele restabelece um equilíbrio naquele contexto. E no equilíbrio você tem mais tempo, o que vai abreviar o seu tempo é o desequilíbrio.



É, portanto, contra o uso de formas e técnicas de suporte de vida artificial?



O suporte de vida artificial pode ser utilizado em benefício do paciente e da sua percepção do que é importante para ele. Por exemplo, cuidei de uma paciente que tinha um cancro de ovário bastante agressivo e estava a fazer quimioterapia paliativa, não tinha perspectiva de cura. A família dela morava toda no Sul do Brasil e ela em São Paulo. Num determinado ponto da trajectória do tratamento, ela teve uma intercorrência aguda, os leucócitos do sangue e a imunidade caíram e ela começou a ter febre. Ela tinha dito no início do tratamento: “Não quero ir para a UTI de jeito nenhum, não quero prolongamento da minha vida, com sofrimento ligada a aparelhos.” Só que, naquele momento, perguntou-me: “Ana, acha que vai dar tempo da minha família chegar?”. Eu respondi: “Acredito que vamos precisar ir para a UTI, se você quiser despedir-se deles, para dar tempo de eles chegarem.” Ela disse: “Aceito, então.” A indicação da UTI não era para prolongar a vida dela por prolongar, mas para dar tempo da família chegar para se despedir. Assim, você faz as intervenções na medida do que tem valor para o paciente.



PÚBLICO -


"Quando comecei a fazer cuidados paliativos há vinte e tal anos, disseram-me: 'Isso é um jeito romântico de fracassar, porque o paciente vai morrer.' Respondi: 'Não, não é fracasso, porque eu sei o que fazer até ao último dia de vida



Já fiz diálise para um doente de cancro de próstata avançado, porque ele queria conhecer a neta. Ela tinha mais três semanas de gestação e ele faleceria. Tinha um sentido, ele queria conhecer a neta. Ele conheceu-a, o primeiro sorriso dela foi para ele e, depois, ele disse: “Agora a minha vida está plena, não quero mais fazer diálise.
dele'"


No livro percebe-se que também é contra a sedação na fase terminal. Mas ela não é feita porque há dor?



 A decisão faz parte da sua história, mas aquele processo é construído. Ele não aconteceu porque ia acontecer, aconteceu porque você decidiu.















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