LOBOS

Sou, na verdade, o Lobo da Estepe, como me digo tantas vezes – aquele animal extraviado que não encontra abrigo nem na alegria nem alimento num mundo que lhe é estranho e incompreensível

Herman Hesse

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Rosas vermelhas2


Em Maio de 1963 eu estava na cadeia.Por vezes a meio da noite,um grito abalava as traves
da minha cabeça,direi mesmo da minha vida, e eu acordava suado, dolorido, como se um rato (talvez o medo?)
me roesse o estômago.E era inútil chamar. Onde ficara essa voz que dantes vinha repor o sono no seu lugar,repondo a paz dentro de mim? E as manhãs penduradas no mês de Maio, onde acordar era uma festa?
Onde ficara a ternura? Onde ficara a minha vida?
Em Maio de 1963 eu estava na cadeia. Dormia-como direi?-acordado sobre cada minuto.Tinha aprendido
o irremediável. Alguma coisa, dentro de mim, se despedaçara para sempre (para sempre? que quer dizer
para sempre?) Era inútil chamar.Tinha aprendido, fisicamente, a solidão. Embora na cela do lado,
alguém, batendo com os dedos na parede, me dissesse, como se fosse a voz longínqua do meu povo:
- Coragem!
Eu estava pela primeira vez, fisicamente só, dentro do meu sono povoado por esse grito que estalava
por vezes as traves da minha cabeça (onde essa voz que mandava embora os fantasmas?).
E era terrível essa manhã sem manhã, essa realidade branca e gelada, toda feita de paredes, grades,
perguntas, gritos. Mesmo que na cela do lado, alguém, batendo com os dedos na parede , me dissesse:

- Bom dia !
era terrível acordar nessa estreita paisagem com sete passos de comprimento por sete de largura, tão hostil,
tão dolorosa como as regiões dos pesadelos. Porque acordar era ter a certeza de que a realidade
não desmentiria o pesadelo.
Mesmo que os meus dedos batendo na parede transmitissem notícias dum homem que podia responder:

-Bom dia,
de cabeça erguida, era terrível acordar no mês de Maio, com a certeza de que no dia doze a minha mãe
não entraria no meu quarto, deixando-me na fronte um beijo,e rosas vermelhas sobre os meus vinte e sete anos.
Talvez seja preciso renunciar à felicidade para conquistar a felicidade. Eu estava na cadeia em Maio de 1963.
Tinha aprendido a solidão. Tinha aprendido que se pode gritar com todas as nossas forças quando
se acorda ao meio da noite com um grito na cabeça e um rato (talvez o medo?), roendo-nosso estômago, que ninguém, ninguém virá repor a paz dentro de nós. E, nessa hora (a mais solitária das horas),
se conseguires cerrar os dentes, dar um murro na parede, acender um cigarro, se conseguires
vencer esse encontro com a solidão no mais fundo de ti próprio, com que alegria, com que estranha alegria,
na manhã seguinte, tu responderás:

-Bom dia !, mesmo que seja terrível acordar no mês de Maio, nessa estreita paisagem, gelada e branca, com sete passos de comprimento por sete de largura.
É certo que se podem escolher outros caminhos.
Mas poderia eu ter escolhido outro caminho? Acaso poderia dormir descansado, onde quer que estivesse,
sabendo que algures na noite, há homens que batem, há homens que gritam?
 


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