LOBOS

Sou, na verdade, o Lobo da Estepe, como me digo tantas vezes – aquele animal extraviado que não encontra abrigo nem na alegria nem alimento num mundo que lhe é estranho e incompreensível

Herman Hesse

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Rosas Vermelhas 1





Nasci em Maio,o mês das rosas,diz-se.Talvez por isso eu fiz da rosa a minha flor,um símbolo,
uma espécie de bandeira para mim mesmo.
E todos os anos,quando chegava o mês de Maio,ou mais exactamente,no dia doze de Maio,às dez e um quarto da manhã(que foi a hora em que eu nasci), a minha mãe abria a porta do meu  quarto, acordava-me
com um beijo e colocava numa jarra um ramo de rosas vermelhas, sem palavras.Só as suas
mãos,compondo as rosas, oficiavam nesse estranho silêncio cheio de ritos e ternura.
Nesse tempo o sol nascia exactamente no meu quarto.Eu abria a janela. Em frente era o largo
a velha árvore do largo dos ciganos.Quando chegava o mês de Maio, eu abria a janela e ficava bêbado desse cheiro a fogueiras, carroças e ciganos. E respirava o ar de todas as viagens, da minha janela, capital do Mundo,debruçado sobre o largo onde começavam todos os caminhos.
E tudo estava certo, nesse tempo, ou, pelo menos, nada tinha o sabor do irremediável.
Nem mesmo a morte de minha tia.Por muito tempo ela ficou nos retratos e no jardim,
bordando à sombra das magnólias, andando pela casa nos pequenos ruídos do dia-a-dia,
até que,pouco apouco, se foi confundindo com as muitas ausências que vinham sentar-se na cadeira,onde, dantes, a minha tia se sentava.
E eu dormia poisado sobre a eternidade, como se tudo estivesse certo para sempre, eu dormia
com muitos olhos,muitos gestos vigilantes sobre o meu sono.
Por vezes tinha pesadelos, acordava, inquieto, a meio da noite, qualquer coisa parecia querer
despedaçar-me e então exclamava:
-Mãe!
e logo essa voz, tão calma,entrava dentro de mim,mandava embora os fantasmas,e era de novo
o meu quarto, a doce quentura da minha casa no cimo da ternura.
Não havia polícia nesse tempo.Ninguém roubaria a tranquilidade do meu sono, ninguém viria a meio
da noite para me levar, porque bastava  eu chamar:
-Mãe!
e logo uma voz, tão calma mandava embora os fantasmas.E era a paz, nesse tempo, em que
todos os anos,quando chegava o mês de Maio,às dez e um quarto da manhã, a minha mãe
abria a porta do meu quarto e colocava, religiosamente, um ramo de rosas vermelhas sobre a minha vida,
nesse tempo, em que dormir,acordar, nascer, crescer, viver, morrer, eram um rito no rito das estações.

 



                                                                


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