LOBOS

Sou, na verdade, o Lobo da Estepe, como me digo tantas vezes – aquele animal extraviado que não encontra abrigo nem na alegria nem alimento num mundo que lhe é estranho e incompreensível

Herman Hesse

domingo, 29 de outubro de 2017

NAS ASAS DE MATILDE




O TEMPO
ESSE GLACIAR, que nos transforma em FANTASMAS ERRANTES.
Nos apaga as MEMÓRIAS, levando quem AMAMOS.


...



Palavras para a "BÁRBA"...ra.
É nos diminutivos, que, encaixamos no imaginário (lá para os lados do Alentejo) as pessoas que construíram as nossas VIDAS.
Quase uma rima, BARBA,,BARBA, BÁRBARA do ALVINO.
Foram eles e elas, uma família imensa com a qual crescemos.
Ignorando os números. SOMADOS de idades e tempo. Adições  que não podemos controlar-lembrando os ROSTOS e as MEMÓRIAS quase perdidas.
É SOBRE MEMÓRIAS que suportamos o PESO da EXISTÊNCIA e ORGANIZAMOS o CAOS da VIDA.
Já são tão poucos que não me posso desperdiçar em banalidades sem sentido.

Interessam-me sobretudo as EMOÇÕES e a PUREZA que se instala no final do PROCESSO.
Tenho a certeza (HOJE), que a nossa geração, foi aquela que  germinou entre espaços das 3 idades. SOMOS ainda na actualidade, situados (JÁ) no alto da PIRÂMIDE,  uma cunha bem martelada no "DESFILADEIRO " dos TEMPOS. Por vocação, relembro a primeira IDADE, aquela que os PAIS desta gente viveram, chegou-me pelas suas memórias... CURIOSO, andava sempre à ILHARGA  de quem queria contar HISTÓRIAS do antigamente, nas casas escuras, frescas e limpas ou nos bancos do ROSSIO onde os seres acabados terminavam os seus dias, SILHUETAS ERRANTES, vagarosas, vergadas ao macabro passar dos anos. Gostei sempre de as ouvir (...as HISTÓRIAS e as vozes do conhecimento) e não foram poucas vezes, que me sentava e fazia perguntas. Todas as portas estavam abertas ou tinham uma "FREXA" que nos convidava a entrar. Gaiatos, SELVAGENS imortais e curiosos . Os dias eram enormes, as histórias sem fim. O primeiro tempo, o das  lenhas em frente às moradias. Das ruas de terra batida e poças cheias de água, dos vendedores às portas-LEITE, PEIXE, CARVÃO e melancia no VERÃO. Das mercearias com mistérios nas embalagens, o BATE-SOLA do SAPATEIRO de BORBA. Semanas a fio de grandes chuvadas. Contavam-se os DITOS e as misérias em redor do lume,( HISTÓRIAS e ENSINAMENTOS). 
Estava no centro, VIVIA  no coração dos acontecimentos, envolto pelos Alvinos, Ratos e Gatos.


 



TIDE!
TIDE!
TIDE!


Quero ir à TIDE. Eu gosto é do comer da TIDE. O rosto apagou-se das minhas memórias , só o vulto, no final a silhueta negra do luto,  de lenço bem atado à cabeça. Era a grande "CHEFA" da família Alvino-casa cheia , quando era chegada a noite.  
Bárbara foi a única que seguiu outro RUMO. Foi o primeiro TEMPO,,,o TEMPO da MISÉRIA e da ESCURIDÃO, dos Invernos longos, das sopas de feijão, do porco no CHIQUEIRO e o toucinho na salgadeira. "BARBA" estava a viver com os TIOS (PAULA e MELINDRA), rabina , mexida, sorridente de  farta cabeleira despenteada. Deus não lhes deu descendência  e a Matilde agradeceu, menos uma boca a alimentar. Foi a MADRINHA, a minha madrinha Paula, dizia ela,,,foi mais que uma mãe digo EU. Esteve com eles até idade avançada , quando casou com o Maltinha.
A viagem curta, 20 passos a separavam da janela pequenina dos ALVINOS, que dava para a Rua Nova da porta da TIPAULA.
20 metros trinta passos bem medidos.



Matilde




-Não gosto da tua comida! Só a da TIDE - e foi sempre por essa janela rectangular na largura, que minha mãe passava o prato da comida para a casa da TIDE e do VELHO ALVINO. 
Ali sim sabia bem, sem me passar pela cabeça que estava a comer a comida lá de casa.

Contaram-me que foram criados numa porta mais abaixo ladeada pela cancela que dava para as tapadas, onde ia-mos às pedras para as fisgas. Ao lado da casa do cabrito.
7 FILHOS-é obra TIDE!! e ALVINO... homem franzino, nervoso, desesperado. Vivia da agricultura, sem terra trabalhava para os grandes proprietários e plantava umas couves no quintal. Criou aquela gente toda, cavando na terra o sustento, os grãos o feijão e as batatas. A primeira idade, das grandes EIRAS e dos trabalhos sazonais que ARTUR PASTOR, aprisionou com a sua máquina.
Mais tarde começou a negociar com os ciganos de feira em feira. Aqui sim arranjou ofício para os homens da família. Mas este é outro assunto.









Dormiam todos juntos numa casa com duas divisões e um anexo.
Conheci-os já na casa grande (NA SEGUNDA IDADE) e fomos todos os gaiatos da RUA criados à volta dos machos, mulas e burros do velho ALVINO. O FERRA tornava-se o seu sucessor, tempos vieram a contradizer esta realidade.

Alvino 
Sempre o conheci com esta "PEQUENÊS" , mas dando bordoadas nas bestas mais inquietas gigantes perto da sua frágil silhueta. Tinham-lhe respeito, recordo-o com a (GILLETTE)  numa mão a fazer a barba e na outra espalhando o feno na MANJEDOURA.
Foi esta segunda idade, que me construiu enquanto PESSOA. Todas as histórias permanecem em mim, coladas à pele, bastando uma imagem, uma palavra e o RIO dos TEMPOS, liberta-se e corre incessantemente sem nada que o possa parar.
Mas a VIDA???!
A VIDA é um GLACIAR, LENTO, que nos sufoca com o seu peso e as suas histórias cobertas por tanto gelo. Por vezes liberta os vultos, distraído e põe a NU todas as ausências que um dia foram EXISTÊNCIA.

...


PORQUE ESCREVES?
Escreves e recordas para quem...

É esta pergunta, que faço quando as vistas encurtam. As multidões diminuem e me sinto desacompanhado.


PORQUÊ e para QUEM??!

-PARA MIM, sempre para mim. Ficar mais leve, fragmentar os meus FANTASMAS. Ambicionar o vazio e a demência, esquecer que alguma vez vivi. Ser um deles. Apagado das memórias e viajar sufocado pelo imenso rio de GELO que se desloca "imperceptivelmente". 


...

 Sempre estive só, por esse motivo também, me aproximava das grandes famílias, e esta foi tão grande, a perder de vista. Os que hoje daí derivam, não terão a noção, e se-calhar não tiveram tempo de escutar a voz dos tempos as histórias da primeira idade e da segunda. Talvez a Bia, a Lurdes, a Maria NITA, o Altino o VIRGOLINO e o Paulo filho da "BÁRBA"RA. Talvez estes se recordem de alguma coisa...



Maltinhas (1,2,3) Melindra -matinha pai do Paulo-Paulo (bébé)-Bárbara-Alvino-Paula
Lurdes do candeias?-Ana Maria- Altino-Marinita-Ferróbico e a Bia Francisca linda com a sua trança grossa.


Esta foto, penso que dos inícios de setenta é a que mais se aproxima da primeira idade, lá está a miudagem, aqueles que receberam o testemunho dos ALVINOS. A TIDE, já tinha partido.
Foi a segunda IDADE que marcou a transição entre o MUNDO ANTIGO- estável, organizado, responsável. Uma constante aprendizagem para o crescimento. Um fervilhar de acontecimentos que se transformavam em HISTÓRIAS. A Má língua foi banida nestes tempos, não existiam objectos que levassem à inveja ou à competição. Cada um de nós e os nossos progenitores, tinham o seu lugar bem definido. Existia um círculo que demarcava os movimentos das gerações. Alvinos, RATOS, Gatos e EXTRADINHAS, foram o CENTRO do nosso mundo, protegidos e mimados  sentimo-nos seguros -criávamos asas com o crescimento e ia-mos à descoberta de outros territórios.
No segundo MUNDO, não havia casas abandonadas, portas fechadas ou gente caída em desgraça.
Não me lembro de infortúnios, acidentes ou mortos no Ultramar-esta a única questão desestabilizador para todas as famílias, não havendo nada a fazer quanto a este assunto.
OZARCOS foi terra protegida, lembro-me de alguém ligado a uma família importante de Estremoz, com ligações ao ZARCOS e   que veio encaixotado. Os mais cépticos desabafavam entre dentes.

HUM!...dentro do caixão (fechado e inviolável) deve estar areia para fazer peso. 

Foi desta forma e em meias palavras que sempre se desconfiou que os dirigentes militares do Estado novo tratavam este assunto dos mortos em combate ou acidente. Depois de muitos meses, poderiam não estar nas caixas os restos das vítimas.



NUCHA-AZEITE-ANA-BÁRBARA-MARIA-CAPITÃO e Natália

A grande família descendente do franzino "VELHO ALVINO" e da minha querida TIDE-Matilde que uma infecção levou em meia idade, depois de deixar ao mundo sete filhos, num tempo da primeira idade em que o ESTADO-NOVO estruturava a independência nacional , na FAMÍLIA e na BANDEIRA.
Dizem para aí os "CHICO-ESPERTOS, intelectuais do regime"acomodados  , que se vivia em obscuridade , opressão e na miséria.
Poderemos reflectir hoje sobre esta questão, nós os da segunda IDADE, que espreitámos de longe para esses tempos escuros, cinzentos, saídos duma GRANDE GUERRA, onde estes e os Algarvios- o velho ALGARVIO meu AVÔ(sete filhos)pedia trabalho ao Madeirinho, nem que fosse a consertar uma parede velha lá para os lados da SERRA. 
Arranje-me qualquer coisa em troca de uns litros de feijão ou GRÃO para alimentar os MARIOLAS. 
Só o meu PAI e o RELA trabalhavam a seu lado. O Madeirinho "desenrrascava" sempre ocupação para a miséria do Pires Raminhos.
Vivia-se de favores, de OBEDIÊNCIA , de respeito pelos estratos sociais. Hoje um assunto tabu-derrotista. 
Celebrar o primeiro e o segundo tempo- é PROIBIDO e soa a  maldição. Mas os banquetes e conspirações continuam como antigamente.

Mas,,,e a segurança?(!)
E os ODORES?(!)
Os SABORES?(!)
As RELAÇÕES?(!)


O COMPANHEIRISMO e as partilhas.
As famílias grandes, as HISTÓRIAS que ficavam para quase sempre-como esta que acabei de me (RE)LEMBRAR. Alguém hoje das gerações do 3ºTEMPO, consegue seleccionar SABORES e ODORES, para nunca mais os esquecer. 
FIXAR-SE numa imagem ou acontecimento, mais do que uns reles 5 minutos. 
É verdade, vivemos na IDADE da LUZ, do aceleramento da TECNOLOGIA,,,do bem ESTAR MATERIAL. Da enganadora IGUALDADE e da DEMOCRACIA teorizada.
Como ZOMBIES caminhamos para o precipício e o esquecimento-deixando atrás de nós um planeta SAQUEADO, maltratado à beira da EXTINÇÃO das espécies animais e do próprio SER (DES) HUMANO.





É nesta TERCEIRA IDADE dos TEMPOS que BÁRBARA escolheu para partir, há muito que os olhos se apagaram, mergulhando numa escuridão TOTAL.
Ecoam em mim as mesmas frases, invariavelmente as mesmas frases quando os visitava no LAR da CASA do POVO.

-Álvaro e o Júlio? JÁ CASOU??...
Já tens NETOS...

Não "BÁRBA"!TÁ BOA! Tome lá um destes bolos...
IGNORANDO(porém) que todas as vezes que a visitei, aqueles bolos ou os chocolates que sempre levo comigo,e distribuo por todos, simbolizam uma GRATIDÃO eterna por  aquela gente que um dia foram os nossos "PROFESSORES para a VIDA", os GUARDIÕES do CRESCIMENTO e de todas as HISTÓRIAS aprendidas nas duas IDADES de um PORTUGAL SÓLIDO e FELIZ.


Em DEZOITO de OUTUBRO da TERCEIRA IDADE dos TEMPOS, desapareceu BÁRBARA JOANA SARAMAGO GATO-Filha do ALVINO e IRMÃ do AZEITE-CAPITÃO (já desaparecido)-MARIA-ANA-NATÁLIA - NUCHA (já desaparecida).
Viveu uma eternidade nas ABAS da SERRA, lá no monte do MALTINHA.
Ao PAULO que VI nascer e  CRESCER um caminho duro te espera nessa RUA NOVA cheia de História. Vazia hoje de todos os ROSTOS que a construíram e lhe deram vida. Nas ABAS da SERRA a silhueta branca do pequeno MONTE e o MACHADO do melindra poisado no silêncio da divisão que dá para o QUINTAL. 
As portas,estão "irreconhecíveis" e fechadas- de  alumínio lacado e  madeiras exóticas, nem os FANTASMAS as habitam.
...
O sinal dos TEMPOS-AUSÊNCIA- VAZIO de emotivos acontecimentos e- Tudo se resume à POLICROMIA das IMAGENS e SONS , à massificação e a uma SOLIDÃO sem RETROCESSO. 
É outro TEMPO, este CRIADO por nós os da segunda IDADE.  O TEMPO TERCEIRO e ÚLTIMO.
A terra essa continuará até o GRANDE DEUS-SOL apagar a sua LUZ.





Aqui me fico descortinando o túnel que nos vai encaminhando para a outra dimensão, onde nos esperam todos eles, os da primeira GERAÇÃO. 
E a PAZ tão desejada.




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