LOBOS

Sou, na verdade, o Lobo da Estepe, como me digo tantas vezes – aquele animal extraviado que não encontra abrigo nem na alegria nem alimento num mundo que lhe é estranho e incompreensível

Herman Hesse

terça-feira, 3 de outubro de 2017

PAIXÃO e DEMOCRACIA


PAIXÃO/2008

 "Democracia é cada vez mais um palavra para esconder a corrupção"





Divide-se cada vez mais entre a escrita e a fotografia, entre Portugal e Nova Iorque. Pedro Paixão, 52 anos, é considerado uma referência da literatura portuguesa contemporânea, o que nunca bastou para que se considerasse escritor ou para combater a vontade de desistir. Preferia ter sido pianista. Acaba de editar “Rosa Vermelha em quarto escuro”.
A sua vida dava um filme?
Não um filme, mas talvez algumas curtas-metragens e dois ou três documentários. Uma pessoa é muita gente, um personagem é uma abstracção. Nenhuma arte, nem o cinema, consegue reproduzir a imensidão da vida.
E a sua amizade com Miguel Esteves Cardoso dava o quê?
Tenho um texto chamado “Uma fatalidade. História de uma amizade” que tem a estranha forma de um só parágrafo de 80 páginas sobre esse encontro. O que não sei é se o hei-de publicar antes ou depois da morte dele, se a dele for anterior à minha. Porque por um lado, como chamou a atenção Primo Levi, é delicado falar sobre uma pessoa viva, e se já não está viva retiramos-lhe a possibilidade de reagir.
O que é que um homem não perdoa a outro homem?
O mesmo que uma mulher não perdoa a outra mulher. Podem ser muitas coisas. Mas viver sem perdoar é levar consigo um fardo na alma. Faz-lhe mal, como uma doença.
Se houvesse uma máquina do tempo retrocederia ao passado em que ambos escreviam a quatro mãos em casa aos domingos à tarde enquanto bebiam e riam e eram felizes?
De certo modo, o Miguel e eu, continuamos a escrever a quatro mãos aos domingos à tarde enquanto bebemos chá preto ignorando que éramos felizes. Há coisas do passado que não passam. Refugiam-se num canto da eternidade. Os verdadeiros amores são assim.
Dedicou-lhe o livro "Vida de Adulto" [1992], onde existe um conto chamado "Ódio". É a história de dois amigos que viveram juntos e que se amaram apesar de odiarem. A amizade não é compatível com egos demasiado insuflados?
No texto “Ódio” o outro não é uma pessoa, mas vários aspectos de várias pessoas amalgamadas num personagem. Creio que é quase sempre assim. A arte altera, junta, desfaz, volta a refazer. Não é possível descrever a vida de uma pessoa. Parece-me que um ego insuflado não consegue entregar-se à amizade porque está preso dentro de si próprio. Mas não era de modo algum assim. Com os anos, e com os livros, o que acontece é ficarmos cada vez mais isolados numa solidão que nós próprios tecemos. A partir de certa altura já não há família, nem amigos. É o meu caso.
Há quanto tempo não lhe dizem que é uma das maiores referências da literatura portuguesa contemporânea? Isso é um fardo ou uma libertação?
Nunca me disseram tal coisa. E se mo dissessem pediria a essa  pessoa para me dizer o que tem a dizer sem empregar juízos sem sentido.
Luiz Pacheco, antes de morrer, disse estar farto de si. Também estava farto dele?Tanto quanto sei o senhor Luiz Pacheco, um dos meus grandes mestres, nunca disse tal coisa. O que disse, na última entrevista, foi perguntar, com a ironia que lhe era própria, se eu ainda estava vivo. Tenho o senhor Luiz Pacheco como uma das pessoas que mais força me deu para escrever, tanto no que dizia publicamente como no que me escrevia. Mas isso só depois de eu morrer. O que havia, e continua a haver, entre ele e eu é amor.
Há alguém da nova geração de escritores que inveje?
Sim. Os que ganham prémios, são convidados para ser membros do Pen Club ou da Associação Portuguesa de Escritores, viajam pelo mundo à custa dos nossos impostos, representam a nossa língua nas mais variadas feiras. Por outro lado, não os invejo de modo algum, pois seria incapaz de aceitar qualquer uma dessas benesses. Aquela piada do Freud: como poderei eu aceitar ser membro de um clube que me aceita como membro.
Diz sempre que não é escritor. O que lhe falta para o ser?
Dizer “eu sou escritor” soa-me como “eu sou filósofo”, uma enorme arrogância. Por um lado, o mais que se pode fazer é continuar a aprender a escrever; por outro lado, continuo sem saber o que é ser um escritor. O que eu sou é mais parecido com uma escrivaninha.
E também diz que "escrever é uma óptima desculpa para quem na vida não tem qualquer esperança". A escrita funciona como terapia?
Escrever serve para muitas coisas, das mais reles às mais elevadas. Como em qualquer arte, o que salva é o mesmo que nos perde. Intensificando a vida intensifica-se a presença da morte. Mas escrever não é uma coisa que se escolha ou não fazer. E uma pessoa não escreve o que quer, mas sim o que pode. Escrevo para não morrer e vou morrendo a escrever.
E está sempre a ameaçar deixar de escrever. Existe nessa ameaça o secreto desejo de que lhe peçam para não o fazer?
Claro. O segredo está em saber quem é essa pessoa que me pede para continuar. É que não se consegue saber. Ou então seria deus. Mas aqui entramos de imediato em grandes mal entendidos. O que vou escrevendo está por um lado completo sob a forma de um livro, por outro lado irremediavelmente fracassado, o que exige que se escreva mais um livro e assim em diante até ao AVC.
É por isso que escreve como quem "sofre de constante abstinência de amor"?
É.
É um desses escritores que prefere escrever a vida a vivê-la? Por preguiça ou por medo?Não se trata de uma escolha. O que acontece é que ao viver a vida ela ganha uma distância através das palavras que se escrevem. Uma pequena distância de morte. Eu vejo a vida, a minha própria vida, a ser vivida. Estou à espera no dentista e para combater o tédio começo a escrever dentro da cabeça um assalto ao consultório. A partir de certa altura uma pessoa está quase sempre a escrever-se. É um vício. Bom e mau.
Também lhe acontece com a fotografia? Estar mais preocupado em registar o momento do que em desfrutá-lo?
Fotografar é muito diferente de escrever porque uma imagem é muito diferente das palavras. A imagem permanece no tempo, as palavras vêm do silêncio e voltam ao silêncio, não se deixam capturar, fixar. A coisa fotografada toma-nos por completo numa espécie de transe. Todo o mundo se resume a ela. É uma espécie de idolatria, o primeiro pecado no judaísmo. Eu não estou numa relação directa com o que é fotografado. Tenho uma máquina pelo meio que me serve de escudo ou máscara. Ao escrever estou por completo sozinho, ou com o mundo que me pertence, o que é o mesmo. Nos dois casos não estou nem preocupado em registar o momento nem em desfrutá-lo. Estou obcecado.
"Se houvesse um deus chamava-se kodak"? Porquê?
Isso é o que diz um personagem já não sei de que história. Ele deve querer dizer com humor a sua paixão pelo cinema ou referir-se ao problema central de o nosso deus não ter nome e assim, também ironicamente, dar-lhe um nome. É fulcral que deus não tenha nome, por que se tivesse nome seria este ou aquele, ali ou acolá, agora ou depois e o que é indicado por essa palavra de quarto letras é o inominável, o incognoscível, o omnipotente. Nós amamos o que desconhecemos. Mais do que tudo é o que desconhecemos, e não podemos vir a conhecer, o que nos une. O amor vive dessa ignorância.
Colecciona títulos. É ainda a sua veia de publicitário que sabe bem como fazer vender um livro?
O primeiro intuito não é vender livros. É o segundo. O primeiro é pedir para o texto ser lido e prometer que vai valer a pena lê-lo. Muitas vezes falha. É curioso notar que os grandes textos têm em geral grandes títulos. “Um eléctrico chamado desejo”, “A sangue frio”, “Em busca do tempo perdido”. Antes de começar a escrever preciso de quatro coisas: um título, mesmo que seja provisório, que serve de tom; ter uma ideia de como vai acabar, porque só assim se pode começar; guardar segredo do que se está ou vai escrever para impedir as interferências; sentir que não é um produto da minha vontade, mas antes que é alguma coisa que pede para ser escrita. Já pensei fazer uma empresa só para vender títulos.
Insiste permanentemente em passar a imagem de um homem desolado, solitário, quase perdido. Também é uma estratégia de marketing?Era bem bom. O que acontece é não conseguir, ou precisar, ou desejar esconder o lado demasiado frágil, profundamente melancólico, tremendamente inseguro, que me domina de uma forma que não é constante mas é seguramente predominante. É o lugar onde mais tarde ou mais cedo sempre regresso. Não é uma imagem, é uma forma de vida que a ninguém recomendo. Mas também não são coisas que se escolham ou que se decida. A partir de agora decido que vou ser feliz. Não funciona. Vou pintar a parede de branco. Funciona.
O que o transformava no alvo predilecto da maldade das crianças quando era também criança?
Não é preciso ler Freud para saber que a maldade também habita as crianças. Faziam pouco do meu nome, de facto ridículo. Não me deixavam jogar futebol porque tinha óculos e não tinha jeito. Tinha muita dificuldade em falar com os colegas por me interessar por coisas que eles não se interessavam, por exemplo a conquista espacial e a astronomia. Tinha de passar pela vergonha de ser constantemente o melhor da turma. E sobretudo sentia agudamente uma violência sempre pronta a manifestar-se e tinha medo. Não tive uma infância feliz mas já não culpo ninguém de assim ter sido. A minha mãe também não teve uma infância feliz.





Ainda diz muitas mentiras? Ainda são para agradar?
As mentiras, em geral, servem para proteger. Minto demasiado sem ser preciso. Mas há várias espécies de mentiras. No meu caso têm mais a ver com uma deformação da realidade e não com a deturpação ou invenção de uma realidade. Muitas vezes as palavras levam-me a dizer coisas que não desejo dizer e de que depois me arrependo. Claro que deve ter muito a ver com o escrever. Um texto é uma mentira que é verdade. Ou uma verdade que é mentira. A vida nunca se deixa fixar de um modo único e definido. E o passado não fica quieto. É alterado pelo futuro. Mentir no sentido de dizer algo a alguém com o intuito de a enganar é que é deplorável. Felizmente, não costumo fazê-lo. Talvez porque não preciso. Primo Levi fala na necessidade de actos imorais, como mentir e roubar, para se poder sobreviver num campo de extermínio.
Voou para Nova Iorque logo depois do 11 de Setembro, publicando a seguir "A cidade depois". Parece ser sempre atraído pelo que é triste. As coisas boas da vida não o inspiram?
A cidade depois. É um bom título. Não fui para Nova Iorque por causa de qualquer tristeza. Voar para Nova Iorque foi a maneira que encontrei para tentar superar a agonia intensa em que me encontrava. E resultou. O que serão as coisas boas da vida? Não há nenhuma vida feliz. Todas as canções de amor são tristes. O humano sofre de um mal que nunca consegue por completo erradicar. Daí o ópio de que falava o poeta.
Nunca votou em Portugal…
Nunca votei porque nunca soube em quem votar. Não aprecio, para não dizer desprezo, a nossa constituição partidocrática: feita pelos partidos, para os partidos e para os que deles se servem e a quem servem. Algum português se sente representado no parlamento? Aliás mais de metade dos eleitos são substituídos pelos substitutos, os primeiros certamente dedicando-se a actividades mais proveitosas.
Votaria nos EUA? Em quem?
Nos EUA creio que votaria sempre democrata. Uma coisa é poder votar, outra a democracia. No Irão, na Russia, em Angola também se pode votar. O que define em primeiro lugar a democracia não é esse privilégio. É ser um estado de direito. E, tristemente, Portugal é cada vez menos um estado de direito, um lugar onde não se faz justiça e em que a verdade não é apurada. Democracia é cada vez mais uma palavra para esconder a corrupção.
Imaginar-se-ia pianista de bar? Isso seria um happy end?
Senão for uma ilusão gostaria de trocar definitivamente as já apagadas teclas do computador pelas maravilhosas teclas de um piano. A música está mais perto dos anjos e dos deuses. Não sabe mentir. Mas não gostaria de tocar num bar porque me deito muito cedo e não gosto de álcool. Gostaria de tocar num paquete no alto mar e viver de música, de água e de mais nada.
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